terça-feira, 19 de maio de 2009

Lepidotríquias (Peça curta para teatro)

Personagens:

Leopoldo Tavares – Homem de quase cinqüenta anos, calvo e de cavanhaque.

Benedita Tavares - Esposa de Leopoldo. Sempre vestida como um sofá de puteiro.

Amâncio Tavares - Filho de Leopoldo. Jovem de vinte e quatro anos. Patético, cara de tonto.

Januário - Sócio de Leopoldo. Corpulento e brincalhão. Agente Funerário e Juiz.



Primeira cena: Mesa de Jantar. Todos comem, Leopoldo levanta calmamente e vai até o aquário e o coloca no centro da mesa com certa força. Olha a mulher e filho, e diz, ainda de pé: Leopoldo – Aqui vou falar a verdade uma vez. Esse é o único ser que realmente amei em minha vida. Esse peixe. Digo de total sinceridade que eu ei de morrer antes dele. E os preparativos por mim ainda, digo, já começaram. Benedita – Senta Leopoldo. Termina seu bacalhau. Tá esfriando. Leopoldo – Não gosto de você – aponta para a mulher – e não gosto de você – aponta o filho, dessa vez com mais raiva. Benedita bate os talheres na mesa e se levanta. Leopoldo a pega pelo braço esquerdo.
Leopoldo – Ouça mulher. Eu tive um sonho anos atrás. Muitos anos atrás – se acalma e solta os braços dela, que fica observando no mesmo local – eu ainda era menino. Sonhei com o dia da minha morte. Sempre busquei... Sempre busquei um apego, uma paixão. Esperando realmente esse dia... Tudo em vão. Esse peixe é minha vida. Vocês são complementos dos quais nunca fiz questão. Amâncio não parara de comer durante toda a breve discussão, faz um gesto como quem termina o prato e diz: Amâncio – isso não me interessa. Benedita – A mim muito menos. Os dois saem da cena. Leopoldo fica sozinho. Senta calmamente na mesa e começa a beijar o aquário, abraçando-o depois. Tenta acompanhar o peixe em seu movimento como se buscasse atenção. Leopoldo - O que determina a duração da vida do peixe é a sua espécie. Existem peixes que duram muitos anos e existem alguns que não suportam aquários e morrem logo. Comprei você, hum, exatos cinco meses. Eu mesmo não duro dois. Fala meio resmungado, depois de um pequeno tempo: pH, dureza, temperatura, ligação, ósseos, cartilógenos, símbolo cristão, escama. Como é mesmo?Pelágicos, demersais, mesopelágicos... Nisso há um barulho de quem bate em
uma porta. Leopoldo apenas olha, não responde. Entra Januário, seu sócio. Januário – Fala Leopoldo! Leopoldo – Hum... (Meio desanimado) Januário – Ótimas notícias. Fechamos o negócio com o Macedinho. Temos que comemorar Leopoldo, comemorar! – com um sorriso dá um tapinha nas costas do amigo, que ainda permanece sentado e indiferente.


Segunda cena: Cortinas se abrem. O agente funerário encontra-se de pé, Benedita sentada na mesa, ele lê a íntegra do testamento: Juiz - “Eu, Leopoldo Tavares Companhia, brasileiro, vice-presidente de uma empresa particular, domiciliado e residente nesta cidade, na rua Joventino Tancredo nº 199, RG tal, CPF idem, natural da cidade de Ponta porã - MS, nascido em doze de janeiro de 1954, filho de Félix Tavares e Rosa Aneâncio Tavares, ambos já falecidos, casado, pelo regime fechado de bens, com Benedita Tavares, com quem tenho um. filho, estando em perfeito juízo e em pleno gozo de minhas faculdades intelectuais, na presença de (03) três testemunhas a seguir qualificadas: Meu sócio, Januário Lobres Pontes, meu contador Federico Ricco e meu tio Tancredo Tavares livres de qualquer induzimento ou coação, resolvo lavrar o presente testamento particular para dispor de meus bens para após a minha morte da seguinte forma: PRIMEIRO: não podendo dispor de todo o meu patrimônio por ter herdeiros necessários deixo para minha mulher, a totalidade da parte disponível de meu patrimônio existente por ocasião de minha morte, porém salvo condições apresentadas ao final deste; SEGUNDO: para meu testamenteiro, nomeio meu sócio, Januário, acima qualificado, fixando o prêmio de (10%) dez por cento, ao qual peço que cumpra e faça cumprir as presentes disposições de última vontade. Declaro não existir testamento anterior em qualquer de suas formas legais. Para que sejam liberadas as contas particulares e feitos os acordos que seja cumprida o meu último desejo em morte: ser cremado, colocado em uma caixa de tom azul escuro e servir de alimento gradualmente para meu peixe amarelo que acredito ainda estar vivo, e se não o estiver, que seja alimentada a sua possível prole ou parentesco comprovado.Nada mais tendo a lavrar, dou por encerrado o presente testamento na presença das (03) três testemunhas acima qualificadas, para as quais li a íntegra do que nele se contém. Local e data, etc.” Bem, é isso – retoma o Juiz,
abaixando o papel, precisamos cremar o corpo” Benedita – Como vamos cremar esse corpo com as contas bloqueadas? Juiz – Acredito que você deveria realizar o funeral ainda hoje e pensar em crema-lo depois. O peixe ainda está vivo? Benedita – Não.



Terceira cena: Cortinas se abrem. Leopoldo está sozinho no palco tomando um copo de água. Ouve a descarga e Amâncio aparece caminhando devagar. Por um minuto se fitam nos olhos. Ambos de pijama e descalçosLeopoldo – Os peixes não dormem. Eles apenas alternam estados de vigília e repouso. O período de repouso consiste num aparente estado de imobilidade, em que os peixes mantêm o equilíbrio por meio de movimentos bem lentos. Por causa disso trepo devagar com sua mãe.Amâncio- Ei pai, você se usa de exemplo o peixe pra transar com a mamãe ? Leopoldo- Éééé....... (visualizando a cena e disfarçando em seguida e mudando de assunto) ...outra história. E então filho o que você me diz desse olho de peixe que nasceu no meu pé?(mostra o pé esquerdo) Amâncio- Bonito! (diz, cortando e emenda:) Aquele dia o que você disse na mesa... é verdade?(Leopoldo olha para o filho com indiferença se vira e lhe dá um tapinha nas costas,próximo a saída do palco ,sem se virar,e diz:Leopoldo - Sua mãe me espera pelada.


Quarta Cena: Abrem-se as cortinas. O juiz enrola um cigarro de palha. Está sério e completamente suado. Seu olhar é fixo no horizonte. Enrola como quem faz isso há anos, automaticamente. Leopoldo está deitado na mesa, morto. O agente funerário mexe vez ou outra no cadáver, dando a impressão de estar preparando-o para o enterro. Acende o cigarro e joga a cinza na boca de Leopoldo, que está de boca aberta, faz isso enquanto abotoa seu paletó. Agente Funerário (Juiz) – É, Leopoldo... esse dente de ouro aqui vai pro saco. (diz enquanto abre as bochechas do morto). Entra Amâncio. O agente retira as mãos da boca do defunto na mesma hora. Amâncio – como está indo? Agente Funerário (Juiz) – Bem. Qual a causa da morte mesmo? Amâncio – Acho que se deu mais ou menos assim...



Quinta Cena: Abrem-se as cortinas. O aquário está no centro da mesa, Leopoldo bebe um drinque, joga um pouco no aquário. Ri e diz: Leopoldo- Bebe, neném, bebe. Vou pegar a primeira condução, acender o direito, sem medir as conseqüências, diante desse meu barracão, sem aperto pra te atravessar. Um minuto... (Leopoldo levanta e pergunta ao seu querido amigo peixe) Leopoldo - Oh!Estimado amigo é pouco uísque pra você,eu se pudesse nadaria em álcool,viveria embriagado,se não fosse a responsabilidade de cuidar de ti,nada me resta a não ser você.... (Ele para por um instante e o silêncio toma o palco. Leopoldo se dirige novamente ao centro do palco, busca o peixinho com as mãos no fundo do aquário toma-o e enche sua boca com uísque colocando o pobre peixe para nadar. Num primeiro momento suaves movimentos lhe acariciam a garganta, o torpor causado no peixe pelo álcool dá a Leopoldo uma sensação de que está fazendo bem ao se pequeno amigo, mas quando a ameaça de morte se tornou eminente o peixinho lutou para sair daquela situação engasgando Leopoldo que tossiu vindo a acordar
seu filho que quando chegou a sala não entendeu aquela cena, se aproximou do pai, ele já não respirava, Amâncio senta-se no chão ao lado do pai ,mas não consegue chorar,lembra da sala de jantar e das tantas outras vezes que fora desprezado pelo pai.) Amâncio - Caralho, o que a merda desse peixe estava fazendo ai?

Sexta Cena: Abrem-se as cortinas. Benedita despe Leopoldo. Abaixa suas calças até o joelho, põe as mãos embaixo da bunda do morto, retira um anel. Benedita: - era aí que você guardava esse anel, né Leopoldo? Antes de sair atrás de não sei quem, depois do almoço. Bom, a empresa é minha, as coisas são minhas. Morra feliz com esse maldito peixe e tenho até algo melhor para você. (Ela vai atrás do palco, pega um balde lotado de enguias numa água verde. Começa a colocá-las, todas, embaixo das nádegas do morto, algumas escorregam, outras ficam). Benedita - Pronto querido, aqui está seu troco (Ao terminar de colocar as enguias ela enxuga as mãos nos vestidos, passa as costas das mãos na boca, cospe). Senta na mesa, ao lado do morto. Acaricia seu peito por debaixo da blusa, deita sua cabeça em sua barriga enquanto acaricia.


Sétima Cena: As cortinas se abrem. Januário, Benedita e Amâncio estão jantando na mesa de centro do palco. Leopoldo chega com vários vinis e joga no meio da mesa, com força. Pula encima rapidamente, a mesa anda um pouco para o lado esquerdo com seu pulo e ele então começa a nadar de maneira lenta, mexer a bochecha como guelvas. Todos levantam rapidamente, desacreditados. A cada tentativa de tira-lo da mesa uma mordida. As cortinas vão fechando devagar enquanto essa cena vai ocorrendo. Ao fechar por completo anunciando o fim da peça, a mão de um dos atores abre a cortina por baixo e deposita o aquário com o peixe amarelo .

FIM.