terça-feira, 12 de maio de 2009

Encerrando o Assunto

da forma mais ridícula possível. Dez horas quentes de viagem, sobrepostas a pequenos pingos de suor escorrendo como líquidos de seringa mal colada nas veias, ao mesmo modo que sacos de soro transpiram. O lugar do banco era o preferido do sol, o esquerdo, o direito, uma mulher cheirando á manga podre ao seu lado. Dez horas. Sem malas, apenas um case de tacos de golfe. Uma cara de raiva ressaquida, de fruta mal chupada, de quem estava num batalha de guerra e todos morreram, o mensageiro teve as tripas cortadas á sangue frio com uma navalha curta, e o batalhão inimigo avança sem pressa e consciente, enquanto ele olha apenas os dois companheiros que sobraram gritando e atirando ante os olhares de escárnio dos adversários, atira para morrer mais devagar. Apenas uma parada. Ele desce, acende um cigarro, dá baforadas generosas que fazem um idoso fumando um palheiro engasgar, esquece que está tragando e tenta acender outro, queima a cara consideravelmente com o primeiro cigarro, a reação sobre a queimação é demorada. Joga o primeiro cigarro quase inteiro no chão, apagado devido ao contato com a carne e fica com o segundo nas mãos trêmulas. Dez minutos, tempo de fumar seis cigarros e acender um último só pelo prazer de jogá-lo inteiro antes de pisar no primeiro degrau de entrada do ônibus. Agora são três horas somente, pensa. Sente a barriga arder cada vez mais a cada minuto, a cada quilômetro. Sua garganta solta arrotos azedos que ardem o céu da boca. As árvores passam demorativas, inconsciênticas (inconscientes e idênticas), sete maneiras de dizer oitenta, noventa, trocar os números por ter os ponteiros preguiçosos como batatas em palito fritando em óleo frio. Uma caixa gelada comete o erro de ter sombras de lua morna num dia tão quente, e ela tem sons que mentem a maior parte do tempo seu incrível preço, sua pequena irmã querendo ir pra onde, qualquer lugar que coloque pregos macios em sua cabeça, palhaços de membros eretos jogam-na no chão imundo de terra batida. Não consegue ver tão longe seu medo, agora ele anda ao redor das diversões e todos os sabores vazam pelos buracos do topo da cabeça, misto de dor, orgasmo e ódio, típico dos assassinos nascidos feitos, que sorvem a morte como alguém com os dentes a morder os lábios, cabeça curvada para trás, olhos fechados e arrepios na espinha, tal um adicto que se encontrava internado e fugiu atrás de sua verdadeira razão. Fazendas que criam nomes para depois abatê-los sem piedade para próprio consumo. Ele vê suas bolas penduradas na parede por um único prego, com único fio de sangue que escorre formando um J devido ao vento que faz naquela região. Atualmente tem pensado muito em bagos, ovos, olhos e objetos ovais.
Chega até a rodoviária e mal a reconhece. Salta do ônibus esbarrando, há quarteirões para andar. A visita é surpresa. A queimadura do cigarro na maçã esquerda do rosto começa a se tornar uma bolha mal cheirosa, vermelha nas bordas, amarela por dentro, transparente por fora. Anda rápido, descompassado, o begue de tacos sacoleja em suas costas, o surra como um chicote. Reconhece a casa. Como poderia esquecer? Faz menos de dois meses. Bate palmas, a pessoa que abre a porta mal acredita, quer entrar de novo, mas a curiosidade ainda é um dos maiores sabores do mundo e mesmo que quisesse não há portão, apenas uma porta que vai direto até a rua. A imagem que ela vê assemelha-se a de um dos perdidos em andanças no mundo: fedendo, mal vestido, triste, cabisbaixo, e com sombras de vida que teve um dia. Ele retira do bague de tacos de golfe uma Katana-Kaji, do Geindato, de forja tsukemune, cintilante aos olhos, generosa ao sol transformado em fino cabelo em seu espelho, comprada na economia de meses, afiada pelo Tomizo Ishida, a maior autoridade em espadas japonesas no Brasil, capaz de cortar um mosquito no ar de forma tão precisa que as duas partes do inseto continuam a voar acreditando estarem vivas. Sabe que é tão ridícula a idéia que o fez questão. Ajoelha tão rápido e com tanta força que machuca os joelhos, cerra os lábios segurando a dor, tudo no maior gesto pomposo como um bushi do shogunato. Põe a espada em repouso nas duas mãos abertas, abaixa a cabeça. Pronuncia: "Daijobu! Soba ni iru kara! Awatishua anataô uashitmasu! Palavras que me ensinastes dentre tantas e das quais nunca fiz realmente questão, somente a questão de vê-la sorrir ao falá-las. Vim para você terminar o quê você começou. Se não for por amor, que seja por piedade." Vendo a recusa da mulher de não tomar a espada nas mãos, e nada pronunciar, encostou-a na garganta. Bastava um mísero tapa de uma criança para enfincá-la até a metade no pescoço. Nisso aparece um japinha velho, muito gente boa, cabelos grisalhos, falar arrastado, magro, interessado nas economias, nos jornais e reconhece o cara, sorri, estava entrando em casa. "O quê está acontecendo aqui?" O samurai ajoelhado e rídiculo responde: "Coisa de jovem." O senhor Yashuhiko Murakami, conhecido como Seu kiko, tão gente fina que arrepia, retrucou "Que ótimo. Sinto saudades dessas brincadeiras, aproveitem ao máximo enquanto podem." Enquanto o sujeito pressionava a katana nervosa no pescoço o velho sorriu de um jeito cordial e entrou, para tirar a camisa, tomar uma cervejinha e assistir ao jornal. O silêncio da ex-concubina pouco ponderou: "Como você é bobo." Ele retrucou: "Termina logo com essa porra, acaba de uma vez. Como se pode confiar em alguém que sangra todos os dias e não morre? Já estou morto há meses, acaba com essa carcaça fédida e essas idéias imbecis e cheias de clichês das quais você transformou minha cabeça." "Vou entrar, fechar a porta. Vá embora daqui, seu louco" Ele a pegou pelo braço. "Eu imploro". E começou a chorar de um jeito tão medíocre, babaca e assustador do qual o mundo não havia parte. "Suas palavras não me tocam mais, conheço cada artimanha delas, uma a uma" Ele respondeu: " O quê se acha em obstáculos intrapassáveis que insistimos em sobrepor e nos ferimos ainda mais? Considere isso ao menos" Ela: "Você só teve sofrimento comigo, por que insiste em sofrer ainda mais?" "Tive sofrimento, prazeres, enjôos, decepções, descobertas, tudo e mais as diferentes combinações que essas coisas podiam me oferecer. Não consigo afastá-las tal um doente, ando doente dentro do apego sobre mim mesmo." Ela entrou e fechou a porta com raiva. Ele ficou olhando para o trinco, com um risco de sangue no pescoço e uma espada cara nas mãos. Andou arrastando a ponta da espada no chão, gerando sons vivos, focados na raspância que ele também sentia na garganta. Ambas simbióticas. "Que diálogo mais bobo", pensou. Encontrou no caminho um bando de pirralhos, uns sem camisa, outros de camisa larga, média de sete a dez anos, brincando na calçada, sujos e ranhentos. Deu a espada para um deles."Brigadão Tio!" gritou um, desacreditado com tamanha generosidade. Enquanto se afastava podia ouvir a excitação da molecada.