terça-feira, 2 de março de 2010

A mão morta

Um dos funcionários padrões daquele banco interiorano e característico, era Benedito Barcelos que trabalhava meio-período e ostentava uma forte cabeleira avermelhada, que mesmo com várias investidas do seu patrão para ser tingida de uma cor natural não surtia nenhum efeito, e para piorar a situação a raiz crescia mais de cinco centímetros, deixando transparecer duas ridículas cores: o vermelho e o castanho claro natural, como não bastando, esses contrastavam ainda mais com seu terno preto lhe rendendo o apelido de tricolor que foi incorporado de tal forma que passaremos a falar dele apenas como Tricolor. Apelido odiado pelo bancário, pois era corintiano. Tricolor e seu único colega de trabalho, que era seu amigo no itinerário, passavam por uma das ruas principais daquela pequena cidade quando se aproximou uma mulher.
- José, não faça contato visual.
- É aquela sua namoradinha não é, Tricolor?
A mulher se aproximou.
- Oi Benedito.
- Olá.
- Passei na sua casa ontem á noite. Toquei várias vezes a campainha.
- É, eu não estava lá.
- Quer tomar um café?
- Agora estou ocupado. Nos vemos amanhã.
Se despediram e os dois núcleos se colocaram a caminhar. Um constituído dela e sua presença carregada e triste, outro dos dois amigos.
- José, cometi um erro. Essa mulher é como um peixe. Para limpar e consumir você impregna suas mãos com o cheiro. Dificilmente sai.
José entra em sua casa, diz para Tricolor entrar, pois há algumas cervejas no congelador. O amigo pensa, coloca o polegar e o indicador da mão direita no queixo, move os lábios, queixa um “rum” entre dentes e diz taxativo: aceito de bom grado. A casa de José era uma típica casa de um desocupado comum de trinta anos, de móveis básicos, desgastados por provavelmente tratar-se de móveis de sua mãe, que falecera dois anos atrás deixando de herança esses que citamos, a casa e um trocado relativamente alto, mas não o bastante para satisfazer o quê se espera normalmente para uma herança de classe média, que José gastou em pouco menos de dez meses com artigos de consumo imediato. Tricolor agora senta no sofá quadrangulável e colorante, que outrora foi provável ser de natureza muito bonita, e espicha as pernas para lados opostos, tão natural como se estivesse sempre ali colaborando para a criação do ambiente personalizado, e espera o amigo trazer a bebida da cozinha localizada atrás do sofá, sem porta ou paredes, separada da sala apenas por um balcão de meia altura feito de cimento, criado juntamente com a casa, que ocupa dois terços da largura do cômodo, deixando assim um vão relativamente espaçoso para a passagem de pessoas. Tricolor tira pela primeira vez a bunda do sofá, mas não totalmente, quase dez por cento dela ainda parece colada no estofado, e levanta meio sem jeito, como quem não quer fazer muito esforço, enruga a maçã do rosto e passa a impressão de cansaço e de desejo de um comodismo imediato e estando assim aperta o principal botão do aparelho, aquele que liga a televisão, o faz meio que se esticando, mas acaba não a ligando, senta, e com ar de reprovação constata o fato, assim sendo, novamente se debruça sem jeito para frente e dessa vez, com um rosto mais fechado, aperta com muita força o botão, quem sabe carregado de raiva ou frustração, ligando-a de vez com um estralo resultante da força empregada, senta, e com visível satisfação não muda de canal, muito menos cogita pegar o controle, que está na escrivaninha perto da porta (provavelmente José foi atender alguém com o controle na mão e o esqueceu ali do lado), apenas deixa no canal que está e deposita os olhos desinteressados e distantes na tela colorida. Um leilão de gado. Tricolor vira o rosto para trás vendo José a comer algo com as mãos de frente com a geladeira de porta aberta:
- Porra José, cadê essa cerveja? É pra hoje?
- Calma, pierrô do deserto. Ela não vai sair pulando.
Duas horas passam e dentro delas os dois amigos trocaram entre si no máximo três frases mal direcionadas, cada um. Beberam treze latas, dividindo desigualmente a última. Fato corriqueiro e entendível para quem se vê todos os dias. Vale lembrar a máxima que quanto mais proximidade, mais silêncio, a saber, que há a relevante natureza desse silêncio típico que não contém nenhum tipo de constrangimento, ao contrário de pessoas não muito intimas. Esqueceram também de jantar. Tricolor levanta meio cambaleando, se apóia no sofá e coloca a mão esquerda na testa, diz que levantou muito rápido, está meio tonto, mas que logo a sensação se vai. José parece nem ouvir, ou ouve e não paga opinião, faz que tanto faça no mais. O bancário nega o convite de pousada e depois de uma longa caminhada chega a casa, finalmente, diz, sentindo os pés doloridos e uma mediana dor nas costas em consideração, por caminhar de mau jeito, colocando o peso no tronco superior frontal, e ao adentrar definitivamente na casa, apóia nas paredes até chegar ao banheiro, aonde engole um pouco de pasta de dente, lava o rosto com água molhando levemente a blusa, por fim tira a camisa e pula na cama acabando por dormir de calça e sapatos.
Acorda no dia seguinte de ressaca e jogando sua cabeça para frente ao caminhar lentamente, como submerso em gelatina, e deste modo arrasta os pés até o banheiro. Levanta molemente a mão esquerda para pegar a pasta de dente dentro do armarinho que sempre deixa aberto impensavelmente, por morar sozinho, mas sente algo estranho: sua mão está completamente dormente, não se move por mais que ele se esforce. Ele apenas consegue jogá-la para cima e ela cai novamente na mesma posição de repouso. Não a sente nem ao menos formigando, é como se ela não existisse, e assim sendo acaba por julgar ter dormido encima da mão, provavelmente um pequeno problema de circulação que logo passará. Esquece. Precisa ir ao trabalho. O primeiro infortúnio que sente é o de colocar o terno. Colocar um terno com uma única mão é uma tarefa complicada por demais. No trabalho, ainda estranha o fato de não conseguir mover os dedos, consegue mover apenas o braço, sentindo-o pela parte acima do cotovelo e digita apenas com a mão direita. Interrompe ficando de modo estático e por um minuto a digitação. Olha para os lados conferindo se há alguém observando e em seguida espeta a ponta de uma caneta tinteiro que estava em sua frente. Nada. Um fio de sangue indiferente que nasce numa pequena bola de sangue na palma da mão cresce aos poucos e vaza em um único fio na seqüência. Ele observa o fenômeno sem expressar reação e não sente a mínima dor. Aos poucos o itinerário temporal de trabalho se completa. Ele volta para casa negando o convite de colegas do trabalho para uma bebida. O braço continua exatamente na mesma condição. Chegando a casa, tenta dormir mais cedo e consegue após três horas deitado. Certifica-se que não dormirá encima da mão atando-a levemente com fita adesiva. Tem certeza que acordará melhor amanhã, caso contrário irá num fisioterapeuta. Amanhece. Ao abrir os olhos, Tricolor sente-se extremamente bem disposto. Dormiu muito e ainda acordou cedo. Desata a mão ainda deitado e fica eufórico ao constatar que ela ainda se encontra sensorialmente imperceptível. Levanta num só impulso e tropeça. Tenta levantar novamente, mas percebe que apenas a perna esquerda responde ás investidas. Sente então a perna direita totalmente ausente. Como se não a tivesse. O pânico começa a obstruir seus pensamentos. Lembra-se de um par de muletas que pertenceu á seu irmão, quando quebrou as pernas, e que guarda no porão. Vai quase que se arrastando até lá. Pega as muletas, sobe e faz um curativo com gaze a fim de disfarçar. Incrível dificuldade em amarrar as bandagens. Depois do trabalho irá visitar um profissional. Não há motivo para desespero. Esquece. Precisa ir ao trabalho. Os infortúnios são dobrados. Esquece da calça, coloca um blazer para não ir totalmente informal. O quê acontecerá amanhã? Caroços na corcunda? Deveria pedir no farol, como tendo as deformidades como maior tesouro, como se fosse aqueles dejetos resultantes da depuração de um deus não existente, pensa. Vai ao trabalho e no corredor todos perguntam sobre o acontecido que ele responde com tamanha pontiaguda humildade que chega até a ofender, porém despropositável e com certa ingenuidade, pois a única coisa que passa em sua cabeça é a dificuldade de sustentar muletas com um único braço, se não fosse o fato de controlar o braço esquerdo acima do cotovelo a tarefa tornar-se-ia impossível, enquanto isso responde automaticamente uma história que bolara no caminho e que convence devido á natureza cerrada, tão fechada que não pareia com muitas perguntas, e depois de livre das indagações e de seus representantes se sente ultrajante. No final da tarde brota uma comoção com a própria dor devido á coloração que sua pequena mesa nutre da janela. Uma gama de proscritos.
- Hei, Tricolor, qual é o problema? Desanimado? Liga não, rapaz. Tomar uma cerveja em casa hoje á noite, já acaba o expediente.
- Porra José, to mals. Sei não.
- Digo Bora.
José dá dois tapinhas nas costas do amigo como de costume, o gesto que sempre causou irritação para Tricolor, mas devido á inédita situação aquilo tomou uma proporção descomunal a ponto do próprio almejar intensamente, de forma quase incontrolável, uma situação de extrema retaliação á aquele gesto ardiloso e inflativo, e assim olhou o grampeador em sua frente e o imaginou cravado no crânio do amigo, ou mesmo grampeando seus lábios enquanto a mão livre segurá-lo-ia pelo colarinho. Aquilo passou em pouco tempo e acabando o expediente, José ajuda o amigo a caminhar e se vão assim como dois irmãos semi-adolescentes, mas nenhum dos dois articula palavra nenhuma e agora bebendo no sofá pensa quais iguarias supuram em seus interiores de carne, assim divaga, assim adormece. Cedo e pesado. José, sabendo que amanhã irão trabalhar tenta acordar o amigo que não responde á nenhuma das tentativas, mesmo as mais apelativas e de maldoso caráter, concluindo que José abandona toda e qualquer possível investida, Tricolor acorda quase no final da madrugada, no período exato que ela adquire aquela coloração mais acinzentada, típica anunciação visual do seu término, desenculatrada da época do ano, acorda sentindo um inédito formigamento pelo corpo, e sente-se tão cansado que não se move, nem abre os olhos, até o momento que o formigamento diminui em uma específica, precisa e multiplicativa proporção até seu desaparecimento, uma variação tão nova e presente que impõe um nome inaudível e uma inquestionável individualidade própria, característica, para só então Tricolor abrir os olhos, ou seja, após a passagem total da entidade de ação e manifestação corporal, sentindo sede tenta levantar, mesmo sentindo-se inexplicavelmente bem deitado, e ao tentar se colocar de pé, não sente o corpo, a cabeça, não sente absolutamente nada, não sente ao menos um mísero músculo Se desespera e tenta gritar sem êxito. Começa a pensar se há alívio na frustração do toque. Paralisias já tivera, durante o sono e de curta duração, mas algo semelhante á essa, nunca, e ele fica por muito tempo sem mover com êxito qualquer um dos membros ou mesmo algum músculo do rosto, tentando inseminavelmente, até que seus pensamentos tomarem toda a sua atenção, pondo de lado as tentativas: pensa se batera algo na noite anterior e deste modo perdeu os movimentos, ou então um provável tumor cerebral, ou uma disfunção do sistema nervoso, coisa de coluna cervical, ou se é apenas um paralisamento provindo do sono, de extraordinária duração, e consequentemente pensa no futuro, no caso de nunca mais se mover e se alimentar por aparelhos, nem ao menos falar, tornando sua situação ainda pior do que a de um paraplégico comum, porém pensa também num futuro não tão distante, um futuro de minutos: não conseguir respirar, perder o controle da respiração e não conseguir retomar o processo. De todos os pensamentos, essa última preocupação toma o primeiro plano, porque notou que sua respiração parece ter vontade própria, como se ele apenas a observasse, ouve e sente, mas a ação em si não parece vir dele. Mas vem. A maior comprovação da independência é o fator de que mesmo ficando ainda mais nervoso com tais reflexões perturbadoras, sua respiração não sofre nenhuma alteração desde o minuto que acordou, ainda com o coração calmo como num espreguiçar de fim de tarde. Em pouco menos de uma hora, tempo enormemente maior em percepção, ele levanta abruptamente e começa a andar em direção á cozinha, pega um saco de café e começa a preparar a bebida, e apenas nesse momento nota uma diferença: nada do que faz exteriormente é ordenado por si mesmo. Seu corpo parece ter vontade própria pondo sua consciência na condição de observador, fazendo-o tomar um choque psíquico de quase inconsciência. Recobra-a ao sentir o gosto do café. Não controla o corpo, mas o sente. Tenta falar e não consegue. José acorda, se aproxima, e Tricolor sente seus lábios abrindo em demorados movimentos, quase quadro a quadro, mas acaba por notar-se soltando um sonoro, elegante e grave “Bom dia, José”, como se o tempo se desdobrasse em duas percepções simultâneas.
- Deu de falar bom dia?
- Acordei bem disposto hoje. Vou tirar as bandagens logo mais, ao terminar o café.
A fala é bem coordenada e precisa, talvez como nunca antes, e sai assim sozinha, de uma fonte desconhecida e própria, deixando Tricolor com a sensação de que a voz vinha de um terceiro elemento, invisível. Novamente tenta falar algo, chegando a gritar na imaginação da emissão da voz, mas nada acontece. De repente, o corpo que esperava a água esquentar, começa a pegar o coador e despejar o pó preto com maestria e certa graça. Ele próprio observa tudo atentamente, sente os materiais na mão: o plástico, o pano, a quentura do líquido na leiteira dispersando calmo em seu rosto. Dá, sem perceber, um valor impagável ás sensações do corpo, sem perceber que já se agarra á esse indiscutível resultado comportamental óbvio se dada qualquer especulação e argumentos para buscar uma definitiva e unânime conclusão. Após tirar as bandagens no sofá, enquanto assobiava, e colocar-se então á caminho do trabalho, conversando muito e animadamente com o amigo, mesmo sem ter idéia nenhuma do assunto ou então de trechos quaisquer, sentindo apenas os pés calçados tocando o chão, a sensação de seu peso, a brisa leve na face, as vibrações da fala alheia nas bochechas, mas da conversa em si não presta atenção nenhuma, não assume a ação da palavra, anda como quando três amigos caminham juntos, sendo ele aquele único que anda antecipado na frente, ou atrasado atrás, cabisbaixo, com as mãos no bolso, sempre com a mesma distância dos outros dois que vão conversando e gesticulando particularmente enquanto ele não participa de qualquer maneira, em verdade assim vai mantendo a mesma medida de afastamento enquanto movimentam-se, porque mantêm a mesma marcha, reflexivo, e codifica o diálogo dos dois restantes como apenas um fundo sonoro imprevisível, mas ao mesmo tempo tão repetitivo e solitário em timbre como um mantra. Ao chegar ao trabalho, após se sentar, sente um cansaço inexplicável e descondizente com a disposição do corpo que assina, examina, lê e autoriza nos papéis com uma velocidade e através do que escreve expõe uma clareza de idéias inédita, e assim Tricolor dorme enquanto observa, acordando só no final do expediente. Ao acordar sente uma confusão mental de lugar, tempo e situação que só é superada em menos de dez segundos, ao notar na mesa em sua frente a revelante prova que Tricolor-corpo fizera todo o trabalho que normalmente demoraria três ou quatro dias enquanto o Original-tricolor dormia. Tenta falar ou tomar controle dos movimentos corporais, sem êxito. Avancemos seis meses. Nenhuma alteração na última condição do bancário que falamos, tornou-se claramente definitiva. Se enumerarmos ou descrevermos os pensamentos, teorias e diferentes tentativas de Tricolor durante esse tempo, tomaríamos muito do já entediado leitor. Resumiremos alguns aconteceres que antecedem a conclusão colocada aqui. Uma das, que deixemos claro. Tricolor fez mais amigos, foi promovido e tornou-se um exemplo do conceito de vencedor da sociedade, sendo abertamente invejado e com relação á isso respondendo sempre com um humor e uma indiferença igualmente notável e não-inspecionáveis, também transou diversas vezes com a mulher que o perseguia de longa data, dando tudo de si na execução, com largo sorriso e de bom grado, mesmo que em pensamento o verdadeiro Tricolor se sentisse enojado e ansioso para o término da cópula presidida exclusivamente por seu corpo. Entremos no verdadeiro e relevante presente. A real entidade e consciência de Benedito Barcelos acostumou-se tanto com a vivência e a conseqüente certeza que não controlaria mais seu corpo que passou a acreditar que o controlava. Hoje chega a acreditar tanto que ele é o responsável por seus movimentos e atos que chega a prever os movimentos do seu eu físico. Não sabemos se é porque agora existe uma sutil comunicação entre os dois ou se Tricolor-mente apenas entendeu bem a personalidade do corpo com o sutil passar do tempo.