segunda-feira, 23 de julho de 2007

segunda nota

Toda a desgraça montada num circo entre os dedos frios de meu pé descoberto, não sei se existem frieiras psicológicas, mas a verdade é que ardia tanto que comecei a socar a parede com tanta necessidade que a pele se rompeu e rapidamente um percurso de sangue se formou até meu cotovelo. Tanto medo da vida, mas ela está aí, a morfética, sorrindo todo dia com seus dentes amarelos e seu ramo coxo; por mais que eu tente me esconder nunca vou conseguir. Estou vivo... sem sorte, sem porte, sem norte, sem corte, esporte, transporte, mas vivo... cercado das vivas coisas entrelaçadas, serpenteadas no bafo forte do dia.

Eu tinha um professor que repetia constantemente os nomes de várias plantas dipsacáceas (acho que é assim que se escreve pelo que me lembro), achava muita graça naquilo e morreu de câncer aos cinqüenta anos. Escapou da vida? Não, a maldita tá ali ainda, vomitando a personalidade daquele velho, por osmose, em todo mundo que o viu fazendo piadas sem graça e fingindo ensinar matemática.

Eu queria nascer morto, torto, no seio do conforto, exposto apenas ás bactérias da decomposição, talvez assim calar a boca da existência, essa diarréia do mundo, que impõe a dor inevitável e fode todo ou qualquer objeto da nossa afeição.

sábado, 21 de julho de 2007

Infância

Seguida como o costume ordenava, sem muita pressa comedida. Morto entre macieiras de luz pertencentes aos carros que nos buzinavam ás calçadas, jogávamos bola em três. As mulheres propositalmente assistiam, minha mãe na sala a acariciar meu pai sem blusa e minha tia Florência tirando mescladas fotografias com a cara.
Gostava de ler bulas antes de me dopar (ou achava que estava a me dopar) e saia jogando terra nos olhos, para ficarem vermelhos, e a fazer caretas para os amigos. Sentia na pele pequena da infância um dos maiores orgasmos dos adultos: o da aparência.
Ao saber que era necessário remover um testículo, em minha mente de criança fiquei submerso em sonhos com machados, onde um literato de barba comprida e relógio de bolso assistia, compenetrado e divertindo-se, a operação.
Calma, ainda bem que é só o esquerdo, ainda ouvia antes de apagar.
O sabor da infância é um sabor de carambola com folha seca, mastigada por uma paca lotada de carrapatos.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

O Gramático Vegetariano

estava chateado com o advento dos sites na internet com dicionários online e corretores gramaticais, mas também não era aquele sujeito que se matou com um tiro na redação do jornal da qual era contínuo Isaías Caminha. Melhor a clausura voluntária do que o embaraço. Mudou os hábitos. Folhas de alface, feijão-de-vaca, acuri, ariticum, bocaiúva, cumbaru, cupari, embaúba, gravateiro, jatobá, jenipapo, mandacaru, marmelada, pequi, arroz-bravo, carne de soja, jatobá -do-cerrado, algarobo, gravateiro ou caraguatá, lentilhas-d’água, caeté, cana-do-brejo, cururum, pequi, mama-cadela, caju, remela-de-macaco, tarumã, laranjinha-de-pacu, pitomba, sumanera, arixicum. Sopas ou tudo cru mesmo. Suco de cipó-de-fogo. Trancou-se na dispensa do quintal e ordenou a mulher que comunicasse seu desaparecimento aos amigos.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Estudo

Não me lembro exatamente se estávamos no mês de maio ou abril, mas lembro das olhadas de uma sensata mulher, gorda, coque firmado, entre tom azulado e rosa, sua elocução constante era que o paraíso tem um tempo bom, dizia ter aparecido lá por um tempo, nos idos das passagens infantis na Bahia, trazia sempre um cachorro preto, magrelo, em concha sobre os braços e contava em moles tons ter acabado seu carinho ainda moça, quando foi compelida nas mãos de um judeu, e como agora sempre almoço suas refeições, pois é perto de casa, qualquer coisa sem muito erro, algo barato e imutável, atende pelo nome de Fernanda e tem o hálito de rosas apimentadas e sempre um tom materno, pois se acendia o cigarro enquanto falava sobre seu filho e suas perdições, de como havia chispado para a capital, levando consigo alguns amigos e quilos de substâncias coletadas gentilmente no interior do Mato Grosso do Sul, ou de sua filha que morrera nas mãos do marido deveras zeloso com a moral da condição de homem, logo ficava em silêncio a observar os desenhos que a fumaça fazia antes de se dissipar, me entreolhava novamente e perguntava se estava boa a comida; Dos seus três filhos, sobrara ainda um, uma madama de torneados vinte e sete anos, trabalha no levar e trazer pratos, avaliava temperos, calculava as somatórias, e que eu, tomado por tanto encanto e beleza provinda de sua negritude, nunca falava algo mais do que um oi, tchau ou coisa alguma, muito menos questionava seu nome, mesmo na minha infindável afinidade com a mãe, nunca a vi tocar na alcunha da filha, referindo-se a esta apenas como filha, quando lhe chamava para propor ordens ou mesmo agracia-la em natureza materna. Percebia meus olhares, que eram poucos por medo da perda da amizade pela sensata mulher de coque firmado, eu saia como de costume e me dirigia ao trabalho na seguradora, lotada de homens suados, gordos e mal humorados que de nada passavam qualquer impressão boa do dia.

Foi num desses dias na firma que percebi uma visita ao longo do corredor, quase não aparente, se não fosse a minha afabilidade por tal figura, não sei se reconheceria de imediato, dada as proporções. Marcelo, camarada de colégio, que a muito sumira para São Paulo e que necessitada de recomendações acerca de suas novas relações afetivas, pois tinha eu, durante sete anos, convivido com certa mulher, que me rendera uma notável e singular dor de cabeça, candidíase, e alguns meses somados de caganeira pela conta de seu almoço. Após breves cumprimentos e tapinhas, falei que lhe desse um pé na bunda e fossemos para um prostíbulo torrar meu salário do mês. Era necessária uma celebração. Antes, passamos pelo restaurante de minha amiga. Não servia jantares, mas tomamos uma boa cerva gelada acompanhada de uns salgadinhos surrados, desses embalados em sacos plásticos sujos. Que bela sainha se encontrava grudada á bunda linearmente torneada de fulana que trazia as cervejas, um vermelho vivo, exalando fêmea de vagina úmida e juro que entendi aquela velha história norte-americana, de caminhoneiros dando tapas nas nádegas de garçonetes. Sai meio refastelado e com bebida entupindo as narinas, dando tapas nos ombros de Marcelo e chamando o táxi. Era um dia especial. Antes de entrar, vomitei, e completei "toca pra zona".

Chegando ao amplo mercado de carnes tristes, escolhemos o lugar de cognome mais engraçada e fomos abordados por uma puta na porta que gritava: "Onde cabe um, cabe dois" de modo repentino e enrugado, quase babando nas piolas dos lábios. Rimos e entramos. Esforcei para não vomitar dentro do recinto, olhei, meu amigo em menos de cinco minutos já havia se entrelaçado com uma puta de nariz espaçado, cara amassada como uma sacola de miolo e tantas estrias e celulite nas coxas (estava de calcinha, somente) que se assemelhava a um iogurte estragado com pedaços de ameixas. Eu saboreava uma "long neck" de nove reais. Após sete dessas, estava tão bêbado que me sentia um hindu vestido de alce num carrossel espanhol. Dormi com a cara no balcão. Acordei, minha cabeça muito pesada e meus bolsos muito mais leves, tentei encontrar Marcelo, mas desisti. Seriam oito quilômetros até minha casa, trajeto que faria seguramente, mas com um maço de cigarros. Pedi um para uma gorda que limpava o balcão "Claro, fofo." Deu um derbão pra mim e me enxotou com as gemas pretas dos olhos. O calor dilacerava minha cabeça no meio, como uma foiçada judiciosa, sentia todas as artérias pulsando, meus pés virando caducos, meus braços pesando um opala. Nisso, um carro passa, vacila um pouco, buzina - Será comigo? – volta em marcha ré. Hum... Estava sem o avental, mas continuava linda. "Entra", ela disse, quase respondi, mas calei a boca a tempo: "Então abre pra eu entrar, delícia".

quinta-feira, 5 de julho de 2007

nota

A caneta ás vezes falha, como tudo também pode falhar. É justamente aí que vemos a figura do mais íntimo ser social, presente desde os primórdios do mundo, em todas as raças, espécies, o fracasso. Consumado um dos pais da realidade humana, logo aparece a defesa existêncial que consiste em criar contextos, impor idéias e associações para justificar a falha para si mesmo ou anulá-la. Escolhemos verdades que nos convém, e na maioria das vezes ela não é a que nos convém. Mas afinal, toda mentira é uma verdade transfigurada. A eterna novidade do mundo consiste justamente em reciclá-las. Surge a evasão, intrínsicamente ligada á defesa, uma solução brutal, pois não aceita romper uma barreira geral tampouco uma diminuição do eu. Aceite a condição; e se alguém gritar, não atenda, para que ninguém grite mais. Não há nada pior que um grito no escuro.