quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

Fabuleta

Num desses dias de sol que arde os lombos, um abutre e um corvo disputavam a carcaça de um gato atropelado.
- Olha só, corvinho, como a natureza é justa. Sou maior. Acabo com você em menos de um minuto e além do mais, preciso de mais carne pra sobreviver...vá caçar uma lesma.
- Para isso existem os jogos! – disse o corvo
- Jogos?
- Isso, onde a lei do estômago e da força não entra apenas a da sorte e infortúnio.
- Quer então travar um jogo comigo? – disse o abutre, pasmo. – E o quê eu ganharia com isto? Basta abocanhar-lhe e pôr fim nesta disputa. Vejo só você levando vantagem se caso eu aceite.
- Não enxergo deste modo, caro Abutre, ira vencer-me ao mesmo tempo no intelecto. Nada mais pode fazer tão bem ao ego quanto isso!
- Qual é seu jogo, no caso eu aceite?
- Simples. Ambos temos garras nos pés... A gente pega um ovo de galinha quase chocho. Aquele que esmigalhá-lo ganha a disputa.
- Como não envolve força? – disse o Abutre estupefato.
- Temos que acertar o ovo com uma pedra. A dezenove asas de distância proporcional ao tamanho de cada um. Deve ser partido de forma que a gema não desmanche. Quem conseguir ganha o gato.
- Acho essa proeza de certa forma, impossível.
- E mais... deve ser ao meu comando!
- Aceito – disse o Abutre pensando que mesmo perdendo podia matar o corvo e apropriar-se do gato morto.
- Aqui está... você começa abutre.
O abutre ficou a dezenove asas de distância do gato e esperou o sinal do corvo. “Vai!” Durante o lançamento, um caminhão veio de encontro com o abutre, atropelando-o.
- Vamos lá, moçada – disse o corvo para os companheiros atrás do barranco – que tem gato e abutre pro jantar!

terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

A bola

Carmen, que devia se chamar Maria, mãe de cinco filhos, todos homens, se o mais novo vendia balas no faro, o do meio nada fazia, pois tinha uma deformação nas mãos de nascença e ou outros trabalhavam de empacotadores em uma loja de grande chamativa no herto da cidade. Devido ao favor que Carmen prestara ao gerente, periodicamente, os filhos não podiam ser despedidos, esse era o acordo, sim, embuxada de novo, de pai desconhecido, era conhecida no local na venda de balas, profissão que passara ao filho mais novo, no semáforo da Avenida Reles Pombo com a Heitor Penteado. Era amiga de poucas em seus adornativísticos cabelos crespos amarelados com raízes negras de cerca de três centímetros, nariz grande (de três lados iguais), fisionomia afetada pelo sol e braços avantajados que mais lembrava uma regurgitada bronca de Cândido Portinari, e seu barraco, azulado do lado esquerdo e negro do lado direito, era formado com os restos de uma construção da vila ao lado.
Era quase meio-dia. João, o filho do meio, estava sentado em um banquinho á porta (mais um buraco do que uma porta) e olhava a rua parecendo procurar alguém “Vem moleque, vem ajudar sua mãe que tá prenha a arrumar a casa, depois nóis almoça que seu irmãozinho já tá vino” “Péra mãe, tô esperando alguém.” A casa ficava na Favela do Chupasco, sendo necessário que os outros três irmãos pegassem duas conduções até o centro. João avistou o amigo Neguinho que chegava com dois amigos e uma bola embaixo do braço esquerdo “Fala aí, Torto (Esse era o apelido de João). Hoje é o dia” “É o dia” e saíram depressa para Carmen não ver.
O campo, que era um terreno próximo da favela, era conhecido pelos moleques. Ali havia uma hierarquia provinda da idade dos usuários do campinho. Uma turma só podia tirar João Torto e seus amigos dali, o que os punha em segundo lugar nesse jogo de poder. Os moleques (todos com aproximadamente oito anos) que jogavam avistaram Neguinho, pegaram à bola e saíram dali. Sentaram no meio da grama e esperaram. Fósforo chegou. “Fala aí, Fósforo” “Manda. Hoje é o dia” “Um por um, conforme combinado”. E começaram a partida. Nome dos times: Time do Fósforo e Time do Neguinho, só isso, cada um com quatro integrantes. Um moleque, sem camisa e magrelo de óculos de aro preto e lentes grossas, que antes jogava, começou a narrar para os amigos sentados, formando assim uma platéia pelos antes jogadores: “Vacilo no ataque, dibra Fósfuru, passa a cabeça, segue... passou... Óia Furunco chegando de lado, passou, passou, chuta com reiva passa reto... Torto tomô a bola, balança as mãos virada. Segue..passa.. Vacilo retoma, Fósforo não..saiu..Aí...golero preocupante.. nossa...caiu. Vai dar treta.”
- Torto, caralho!
- Foi mal.
- Nossa... machucô?
- Não... Furunco, pênalti?
- Vai.
O moleque retoma: “Vacilo vai cobrar. A lá. Faz pressão, coça o cotovelo..Olha pro golero Biba...Goleiro Biba olha pro vacilo. Hu...prá fora...”
- Vacilou, vacilo! A bola foi. Desceu o barranco...
- Torto, vai lá buscar.
- Porque eu? Eu num chutei.
- Pô, vai lá.
“ Torto foi buscar a bola. Tensão. Parece que Vacilo inda discuti com Fósforo. Tensão no campo.”
- Pô, cadê o Feio (Torto também era chamado assim) com a bola?
- Furunco, vai ver lá.
- Vô
“Parece Furunco vai atrás de Torto. Voltou...”
- O Torto não ta lá não. Nem ele nem a bola.
- Ta brincando.
- Não, é sério.
Ocorre neste momento uma deslocada geral até o lugar onde caiu a bola (visto que o campo fica em um barranco). “Desce com calma. Fica lá em cima mulecada. Vai” “Nossa... o Torto sumiu. “Deve ter desistido do jogo e sumiu com a bola ainda”! “Ganhamos então” “Ganharam nada Biba, vamos na casa dele ver.”
Casa do João:
“João, João!” “Quié?” “Oi, Dona Carmen” “O jão táí?” “Não, João fugiu aquele safado. Ia me ajudar a arrua a casa qui tô prenha. Achei que tava jogano cusseis” “Tava, a bola caiu atras do campinho. Ele foi buscar e sumiu.” “Daqui a pouco aparece aqui então, aquele safado. Quando vié aviso oscêis” “Falô, Dona Carmen”
Seis e meia. Os três filhos chegaram (o mais novo havia chego há duas horas). “Mãe, cadê o mano?” “Num vortô ainda. Devi di ta farreano” “Foi jantá aonde?” “Na casa do Neguinho” – disse o mais novo “Dexe disso, menino. Desde quando João janta lá?”
Houve silêncio na casa e á noite, deitada na cama, Carmen chorou. Amanheceu e como de costume, os irmãos do trabalho fixo já tinham saído bem antes do sol mostrar sua cor. Carmen levantou ás sete e foi até a frente de casa. Observou o movimento e decidiu dar queixa na polícia. “Desde quando polícia resorve, mãe!” Deu uma volta na favela, passou pela casa de alguns amigos de João e seguiu para o campinho. Chegando lá dialogou com os meninos que jogavam por ali. Deviam ser do sexto escalão da hierarquia do campo, resumindo, de informaçôes nada valia a presença e o deslocamento da mesma. Voltou prá casa e crente do saldo de uma manhã e uma tarde de esperas e tensões.
Cinco dias se passaram e na casa dos empacotadores, sua mãe e o pequeno vendedor de farol, o garoto de pequenas mãos curvas para trás não apareceu. A notícia que esperavam era sobre o corpo, sendo que já o tinham como presunto. Vale a pena aqui lembrar quem é o João de quem falamos: João nasceu, seu pai tinha sumido após espancar a mãe por motivo desconhecido. Pois bem, foi o último da linhagem Pai-Carmen, se assim podemos dizer, e outros três (incluindo o na barriga) são meio-irmãos. Carmen, que devia se chamar Maria, tem um apreço muito grande por este filho, dizem que a pena é o sentimento mais próximo do amor, por ter nascido defeituoso, sem poder mexer um só dedo, em que a palma fica sempre com a pele toda retorcida, enrrugada e curvada para trás. Há também uma feiura singular no rosto do garoto. O nariz, extremamente avantajado, expandido para os lados, possue perebas, que assemelham em cor e textura, com as do rosto. Enfim, o menino mais propício á chacotas da região. De repente, os boatos brotaram como casas em terreno não apropriado naquela favela. Uns diziam que tinha sido morto pela polícia, uns por traficantes, aqueles que tinha fugido de casa e houve até quem falasse que foi contratado pelo Palmeiras. Mas o mais novo, certo almoço, disse algo digno de um Espinoza: “Achando a bola, a gente acha ele.” Gênio. Uma bola no meio da cidade de São Paulo resumia a existência do irmão, da ossada aparecida que fosse, mas nada, apenas a bola.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2006

De todos os trajetos prostitutos só areia guardei em meus sapatos

Mais uma vez aqui sentado tentando colocar palavras em lugares errados, mas ouvi uma vez que a prosa é uma página em branco sobre a qual podemos cagar. Pensamentos como estes me levam até Mirela. Mirela sim, era boa de chupeta. Lembro-me que em 76, ou melhor, 77, ou inicio de 77, não sei ao certo, fazia viagens constantes ao Paraguai com dois amigos da empresa. Ali havia os presentes ideais, sem revenda, tudo para consumo do pessoal. Aqueles tempos, sem preocupação de camisinha, sem muita fronteira, bigode á vontade. Hoje sou aposentado. Jogo Tênis com um ex-companheiro de firma e digo que amo minha mulher. Minha Mulher, Agenélia. Como era bela, agora é uma gorda que bebe o dia inteiro. A gorda vive com raiva na sala e grita com meu filho de dezoito anos. Em verdade, eu tenho vergonha. Vergonha de ter nascido um idiota por completo. Ter vivido um idiota por completo. Ter feito boas ações, ter tentado fazer as coisas certas, ter saído com poucas putas. Hoje escrevo nas horas vagas. Quando não paro para coçar o saco até criar feridas feias.
Podia citar quinze nomes, mas dariam muito trabalho. Muito trabalho. Idiotices, mediocridades e perdições. No meio disso tudo, música! Como se um teatro se abrisse e uma ligação feminina se resumisse em dizer que não me acha no endereço especificado, sabe, uma espécie de liga. Imaginária, claro. Voltemos a Mirela, a boa. O grito que ele dava no quarto, quando era fim de semana na praia, quando era dia suficiente, chamava a atenção dos chalés ao lado. Na cidade de encontro, do dia branco, comprávamos sapatos para podermos jogar ao mar com nossas preces. Era esta década de setenta em que a repressão não se mostrava, mas existia em excesso. Jovens falam dela em excesso e não ouvem seus pais que viveram nessa época. Mirela dizem estar trabalhando de vendedora em uma loja, nunca mais a vi, não quero ver. Mais deve ter casado? Lembra de mim? Quantas perguntas estúpidas...
Bom, continuando. Estávamos em 77, ou próximo disso... Alugávamos uma casa no litoral para nos encontrarmos. Eu da Vila Mariana, ela de Perdizes, tudo em seu respectivo lugar. Dizia que ia passar o fim de semana com uma amiga na praia. Ás vezes ela atendia o telefone e eu estava agachado com a cara em suas carnes enquanto a safada falava com os pais. Bons tempos. Hoje tenho cirrose. Hoje minha mulher me xinga. Mas em 77..bom, acho que foi em 77...Você acha? Reclamar do arroz que eu fiz? Aquela gorda senta com sua bunda gorda, me olha com a cara gorda, me xinga com a boca gorda e ainda reclama do arroz que eu fiz... Mas Mirela, bem, voltemos a Mirela...
Bom, continuando... Mirela tinha os cabelos loiros cacheados e era muito magra. Podia levantá-la pela cintura e carregar até o mar enquanto batia suas frágeis e macias mãos em meus ombros. Seu sorriso era franco e às vezes infantil até por demais. Olhava primeiro nos meus olhos, depois descia o olhar até a virilha (onde a mão cuidadosamente já havia se apossado) e voltava o olhar para mim, naquele calor..naquela época...naquele vento... Peraí, minha mulher me chamou pra dar comida pro Frog. Ha. O Frog é nosso cachorro de estimação. Ele é cego de um olho e não anda direito. Ele é meio velhinho, sabe?
Voltei. Continuando... Fazíamos janta sempre nesses dias. Almoço não dava tempo, acordávamos muito tarde e passávamos a foder até umas cinco da tarde quando nos banhávamos. As jantas eram sempre coisas rápidas, feitas sem pressa, mas rápidas. A noite era a melhor parte, passear naquela cidadezinha, ir pro motel “Sereia Serena” (Um muquifo, onde nos intervalos da transa era necessário acertar as baratas com o chinelo). Tudo era muito belo. Tudo era muito lindo. Morava com os tios e o carro era sempre liberado. Já tinha trinta e poucos anos, Mirela dezessete, mas era como se eu tivesse vinte. Anos deliciosos. Ontem consertei o telhado. Agenélia ficou embaixo dando palpites. A vontade era de tacar uma calha na cabeça da maldita, mas ouvi, como sempre.
Bom, vou parando por aqui. Tenho que fazer janta pra minha mulher e filho. Sabe como é, escritor de horas vagas, escrevo sempre que termino a faxina da sala, é um costume...

domingo, 5 de fevereiro de 2006

O bispo

É certo que por toda Inglaterra se ouvia falar no bispo Wash. Esse era seu apelido carinhoso, falado nos túneis que ligavam o mosteiro ao convento. A Madre Superiora confeccionara de pronto. O bispo Wash possuía muitos inimigos, embora fosse tão popular, e pelas ruas de Londres havia um em especial. Um mendigo cego e leproso, que jurava ser Deus, gritava com muita raiva sempre que o Bispo passava. “Não sou seu pai, maldito” Retrucava o bispo. “Pois poderia bem ser, padre escroto.” “Não sou padre, sou bispo” e atirava um rolo de cuspe na caneca do mendigo. Este então passava o pão amassado que carregava no bolso na caneca e o comia dizendo: “Essa é a prova de um Deus único, Bispo.”
Numa das suas seções em um dos túneis, o bispo ouviu um grito. O mendigo veio correndo em sua direção e golpeou o sacerdote na face que deitou no chão sem um olho. O mendigo arrancou o olho que estava grudado na foice e pôs dentro do pão. Comeu, arrotou e cuspiu. Foi condenado á morte no dia seguinte e houve muita festa.

A Torre

- Há anos tento construir uma torre em nossa residência de verão, meu filho. Quando seu pai morrer avise vossa mãe que ela poderá vender a um fidalgo qualquer que a desejar possuir.
- Ó papai, como tu és belo e justo.
- Obrigado. Vamos tomar café agora.
Nisso passava um velho careca com sardas pelo rosto inteiro e que ouviu a conversa. Olhando as nádegas do menino gritou:
- Com uma borda dessas, faço haver tua torre.
- Pois trate de mostrar os dotes.
- Pois aqui ei-los.
- Obrigado. Venha tomar café com a gente.
Nisso passava uma velha careca com sardas pelo rosto inteiro e que ouviu a conversa. Olhando as nádegas do menino gritou:
- Faço haver também tua torre com uma borda destas.
- Pois trate de mostrar os dotes.
- Pois aqui ei-los.
Passou desta vez um mocó que surrava o intestino, sangrava pelas narinas, corroído pela lepra e cuspia os dentes enquanto falava:
- Faço haver também tua torre com uma borda destas.
- Pois trate de mostrar os dotes.
- Pois aqui ei-los.
A torre, de pronta, foi construída por cerca de quinhentos homens e uma velha, e se via por toda a região.