terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

A bola

Carmen, que devia se chamar Maria, mãe de cinco filhos, todos homens, se o mais novo vendia balas no faro, o do meio nada fazia, pois tinha uma deformação nas mãos de nascença e ou outros trabalhavam de empacotadores em uma loja de grande chamativa no herto da cidade. Devido ao favor que Carmen prestara ao gerente, periodicamente, os filhos não podiam ser despedidos, esse era o acordo, sim, embuxada de novo, de pai desconhecido, era conhecida no local na venda de balas, profissão que passara ao filho mais novo, no semáforo da Avenida Reles Pombo com a Heitor Penteado. Era amiga de poucas em seus adornativísticos cabelos crespos amarelados com raízes negras de cerca de três centímetros, nariz grande (de três lados iguais), fisionomia afetada pelo sol e braços avantajados que mais lembrava uma regurgitada bronca de Cândido Portinari, e seu barraco, azulado do lado esquerdo e negro do lado direito, era formado com os restos de uma construção da vila ao lado.
Era quase meio-dia. João, o filho do meio, estava sentado em um banquinho á porta (mais um buraco do que uma porta) e olhava a rua parecendo procurar alguém “Vem moleque, vem ajudar sua mãe que tá prenha a arrumar a casa, depois nóis almoça que seu irmãozinho já tá vino” “Péra mãe, tô esperando alguém.” A casa ficava na Favela do Chupasco, sendo necessário que os outros três irmãos pegassem duas conduções até o centro. João avistou o amigo Neguinho que chegava com dois amigos e uma bola embaixo do braço esquerdo “Fala aí, Torto (Esse era o apelido de João). Hoje é o dia” “É o dia” e saíram depressa para Carmen não ver.
O campo, que era um terreno próximo da favela, era conhecido pelos moleques. Ali havia uma hierarquia provinda da idade dos usuários do campinho. Uma turma só podia tirar João Torto e seus amigos dali, o que os punha em segundo lugar nesse jogo de poder. Os moleques (todos com aproximadamente oito anos) que jogavam avistaram Neguinho, pegaram à bola e saíram dali. Sentaram no meio da grama e esperaram. Fósforo chegou. “Fala aí, Fósforo” “Manda. Hoje é o dia” “Um por um, conforme combinado”. E começaram a partida. Nome dos times: Time do Fósforo e Time do Neguinho, só isso, cada um com quatro integrantes. Um moleque, sem camisa e magrelo de óculos de aro preto e lentes grossas, que antes jogava, começou a narrar para os amigos sentados, formando assim uma platéia pelos antes jogadores: “Vacilo no ataque, dibra Fósfuru, passa a cabeça, segue... passou... Óia Furunco chegando de lado, passou, passou, chuta com reiva passa reto... Torto tomô a bola, balança as mãos virada. Segue..passa.. Vacilo retoma, Fósforo não..saiu..Aí...golero preocupante.. nossa...caiu. Vai dar treta.”
- Torto, caralho!
- Foi mal.
- Nossa... machucô?
- Não... Furunco, pênalti?
- Vai.
O moleque retoma: “Vacilo vai cobrar. A lá. Faz pressão, coça o cotovelo..Olha pro golero Biba...Goleiro Biba olha pro vacilo. Hu...prá fora...”
- Vacilou, vacilo! A bola foi. Desceu o barranco...
- Torto, vai lá buscar.
- Porque eu? Eu num chutei.
- Pô, vai lá.
“ Torto foi buscar a bola. Tensão. Parece que Vacilo inda discuti com Fósforo. Tensão no campo.”
- Pô, cadê o Feio (Torto também era chamado assim) com a bola?
- Furunco, vai ver lá.
- Vô
“Parece Furunco vai atrás de Torto. Voltou...”
- O Torto não ta lá não. Nem ele nem a bola.
- Ta brincando.
- Não, é sério.
Ocorre neste momento uma deslocada geral até o lugar onde caiu a bola (visto que o campo fica em um barranco). “Desce com calma. Fica lá em cima mulecada. Vai” “Nossa... o Torto sumiu. “Deve ter desistido do jogo e sumiu com a bola ainda”! “Ganhamos então” “Ganharam nada Biba, vamos na casa dele ver.”
Casa do João:
“João, João!” “Quié?” “Oi, Dona Carmen” “O jão táí?” “Não, João fugiu aquele safado. Ia me ajudar a arrua a casa qui tô prenha. Achei que tava jogano cusseis” “Tava, a bola caiu atras do campinho. Ele foi buscar e sumiu.” “Daqui a pouco aparece aqui então, aquele safado. Quando vié aviso oscêis” “Falô, Dona Carmen”
Seis e meia. Os três filhos chegaram (o mais novo havia chego há duas horas). “Mãe, cadê o mano?” “Num vortô ainda. Devi di ta farreano” “Foi jantá aonde?” “Na casa do Neguinho” – disse o mais novo “Dexe disso, menino. Desde quando João janta lá?”
Houve silêncio na casa e á noite, deitada na cama, Carmen chorou. Amanheceu e como de costume, os irmãos do trabalho fixo já tinham saído bem antes do sol mostrar sua cor. Carmen levantou ás sete e foi até a frente de casa. Observou o movimento e decidiu dar queixa na polícia. “Desde quando polícia resorve, mãe!” Deu uma volta na favela, passou pela casa de alguns amigos de João e seguiu para o campinho. Chegando lá dialogou com os meninos que jogavam por ali. Deviam ser do sexto escalão da hierarquia do campo, resumindo, de informaçôes nada valia a presença e o deslocamento da mesma. Voltou prá casa e crente do saldo de uma manhã e uma tarde de esperas e tensões.
Cinco dias se passaram e na casa dos empacotadores, sua mãe e o pequeno vendedor de farol, o garoto de pequenas mãos curvas para trás não apareceu. A notícia que esperavam era sobre o corpo, sendo que já o tinham como presunto. Vale a pena aqui lembrar quem é o João de quem falamos: João nasceu, seu pai tinha sumido após espancar a mãe por motivo desconhecido. Pois bem, foi o último da linhagem Pai-Carmen, se assim podemos dizer, e outros três (incluindo o na barriga) são meio-irmãos. Carmen, que devia se chamar Maria, tem um apreço muito grande por este filho, dizem que a pena é o sentimento mais próximo do amor, por ter nascido defeituoso, sem poder mexer um só dedo, em que a palma fica sempre com a pele toda retorcida, enrrugada e curvada para trás. Há também uma feiura singular no rosto do garoto. O nariz, extremamente avantajado, expandido para os lados, possue perebas, que assemelham em cor e textura, com as do rosto. Enfim, o menino mais propício á chacotas da região. De repente, os boatos brotaram como casas em terreno não apropriado naquela favela. Uns diziam que tinha sido morto pela polícia, uns por traficantes, aqueles que tinha fugido de casa e houve até quem falasse que foi contratado pelo Palmeiras. Mas o mais novo, certo almoço, disse algo digno de um Espinoza: “Achando a bola, a gente acha ele.” Gênio. Uma bola no meio da cidade de São Paulo resumia a existência do irmão, da ossada aparecida que fosse, mas nada, apenas a bola.