domingo, 1 de junho de 2008

A Estimável Casa de Alcides (Romance) - Parte I: Terminal

Final de jogo, ônibus demorando, sol onde havia um resto da noite na camisa de Honório. Pergunta: - Calor?
- Muito.
- E a demora desse ônibus?
Dá uma pequena bufada, olha pra senhora que virara o rosto, quem sabe devido ao perfume deleitoso de seu sopro, e completa: - Eu não sei. Honório chegou quando havia a passagem exata, ofertada minutos antes por severas insistências, para a ocasião, os dois reais. A troca de ônibus no terminal bem vinha, devido ao dinheiro calculado, no interior, o ônibus vazio, o cobrador badala, ironicamente, sobre a celebração dos franceses em uma televisão em uma loja qualquer que os poucos tripulantes, talvez quatro, um tão ausente ao ambiente que quase não se conta, se encaram sem articular palavra, quando no ponto antes do terminal, ele desce, alguns passos retinidos, lembrou que a casa era próxima, queria andar por entre aquele cheiro de mijo que o bairro tinha. - Casa! Havia uma moça-adenina na garagem que discorria ao celular. Se ela não ficar com asco, pelo menos arrisco – Pensou. Perguntou se havia sobras no domicílio, pão, há de comer no geral, a qual hesitou em estranheza e comunicando ele a brincadeira perguntou se havia alguém na casa, que procurava por Astolfo ou Virginia.
- Quem é? – gritaram da cozinha que tinha a janela de frente pra rua. – É o Zidane. – Se for o Honório, entra não.
- Peraí, vou pegar lá a chave pra você – disse a moça, bem afrescalhada, empinou-se ao saber que era conhecido e vestia uma camiseta com a palavra Puppi estampada em tons róseos, com a chave demorando, estava tendo uma comemoração que já não era mais comemoração, perda de jogo, a casa exalava um cheiro de episódio, carbonizado talvez, combinado com uma fragrância barata que enojava qualquer ser passante e ainda por cima havia o cheiro do bairro. Enquanto desfigurava relevante sobre os cheiros e conseqüências, ficou pensando no cumprimento, se seria correto dar um beijo no rosto, pois Honório ficava ininterruptamente com essa anfibologia subentendida ao cumprimentar uma fêmea. Enfim, não deu, a modo de praxe. Aquela passada pela sala com pausa de observação ao objeto multicolorido, notório, e ida para a cozinha, sala de estar em comemorações.
- Fala Astolfo. O que vocês estão fazendo aí?
- Arroz. A carne vai sair. Frederico tá tentando um apimentado. – apontou para a mesa. - Até hoje não acertou. E ontem o que você fez?
- Fui parar no centro. Quando acordei tava lá. – molhou o dedo no copo disposto ao lado esquerdo para saber a substância presente ali, provou, limpando na blusa estalou dois dedos da mão direita, abriu uma lata de cerveja do refrigerador. Era tradicional a comemoração naquela casa, certo, ás vezes havia cerveja, ás vezes não havia nada, apenas truco com Astolfo peidando e gritando alto no blefe, enquanto metade das nádegas ficava submersa nas calças e a outra metade suada brilhando com a luz, refletindo o ambiente qual espelho. Honório saiu da cozinha deslizando o chinelo, como se anunciasse sua ida até o quintal. Seis ou sete pessoas, uma churrasqueira improvisada com tijolos, instalada no piso da área e uma pequena área verde ao fundo, construída acima do solo, com quase dois metros por um, para a plantação de pimenta e repolho, todos sentados com exceção de Frederico, que cuidadosamente colocava alho triturado em conserva numa panceta. Honório ofereceu cerveja a Frederico que engoliu muito veloz e ainda arrotou sem barulho – É Boa.
- Você. Conheço você.
- Não. Não sei. – disse com tom arrastado, atenuado, quase soltando cerveja pelo canto esquerdo da boca, não era costume ser por mulheres abordado.
- Meu nome é Marcela. Ouviu sobre mim? – Aquele papo já estava irritando Honório - Você faz o quê?
- Sou estudante de engenharia mecatrônica. E você?
- Sou puta.
- Muito bom. Legal, anima o pessoal. Foi contratada para o quê precisamente?
- Não fui contratada. Sou amiga de Roberta, aquela ali, – disse apontando o dedo indicador para uma ruiva sentada no chão Honório nunca havia visto Roberta. Não morava naquela casa mais conhecia o circulo inteiro dali, as dez pessoas isso se não calhar exagero. Dirigiu-se até Roberta.
- Roberta? Como vai. Honório. – Pensou novamente se devia beijar a face da mulher, mas hesitou novamente.
- Olá.
- E aí? Quanto é o programa, ou já foi acertado?
- Quanto é o programa? Sou cabeleireira. O quê?
- Sua amiga ali. Achei que trabalhavam juntas.
- A Marcela? – Gargalhou escandalosamente – Não, brincadeira. Ela trabalha comigo no salão, manicure.
A parábola não foi bem-vinda, afastou a esperança gorada, no caso uma ligeira batida na porta do lado de dentro da casa persistia. Astolfo, na cozinha, olhou pela janela de frente ao portão enquanto enxugava uma colher de vinagrete, onde um homem de aparentemente quarenta anos se debatia aferventado e onde ele, Astolfo, cerrava bem a vista para atingir o drama, o homem pedia pão, Astolfo se removeu para providenciar alguns. Ao abrir a porta, o sujeito estava ao pé dela, perpendicular, mirando um revólver em sua cara: Oi. Entraram. Dois. Apenas Astolfo estava dentro da casa. Todo o restante estava no quintal, com exceção de Padrinho que estava dormindo, um sujeito mais tarde.
- Chama o Frederico pela janela.
Astolfo com mais precisão sentia as artérias, compassadas devido ao nervosismo e euforia, a ponto de não perceber que o ladrão (dois, o outro observava permanecendo semicataléptico) sabia o nome de um dos moradores. Chamou o amigo pela janela com um dos invasores encostando o revólver em suas costas. Quando Frederico entrou na cozinha, o ladrão que pedira pão já não era mais um ladrão, este olhou fixamente, e como se estivesse derramando aos jatos a mais legítima urina, atirou quatro vezes na cabeça de Frederico. Na primeira caiu no chão, nos tiros seguintes o assassino disparou a um ângulo de 40 graus aproximadamente tomando distância, progressivamente, para que o sangue espalhasse bem, tirando sórdido proveito daquele momento em espasmos do mais puro orgasmo. Saíram os dois na cabriola, como se, finalmente, foi-lhes revelada a obtenção do prazer pela força, em que Padrinho acordou, cambaleante, de cuecas perguntando de quem havia sido o gol. Enquanto Virginia ligava para a Polícia, perguntas repulsivas e martelantes dos que olhavam o corpo no chão, este em precários minutos disseminou o cheiro de morte pela sala, aos poucos ganhando mais espaço, encontrando seu ambiente. Cheiro enojado, de sangue, pólvora e fezes já que Frederico cagara nas calças após o primeiro tiro. Na cabeça de Honório as cenas de quando conheceu Frederico, há três anos atrás, foram se formando progressivamente, meio que sem aspirar, enquanto contemplava o sangue no chão, que formava desenhos geométricos de total simetria e contumácia devido ao formato do piso, cintilando mil vezes mais em seus olhos. E o rastro? Como era bonito seu deslize, seu caminho, vivo, semipulsando, lindo.
- Passa esse copo.
- Como?
- Prazer, Frederico.
- Honório.
- Viu aquele cu? Maravilha.
- Qual? Cida. O Nome dela é Cida.
- Lá.
- Vai mesmo?
- Vou.
- Vou junto. Tá com uma amiga.
Frederico também era estudante, a raça mais bócio, portanto, execrava ser definido estudante e quando alguém perguntava o que ele fazia, dizia consecutivamente a frase cometida: Sou acionista da bolsa de valores. Estudante. Tem muito estudante “nunca foi estudante”, era uma magnificência sem fim, um presságio de sucesso sem valores, uma pachouchada no tratamento imperdoável para com aquele sujeito.
- Oi Cida. – Honório conhecia.
- Oi.
- Esse aqui é Frederico.
- Oi. Essa é minha amiga, Gislene.
A amiga era gorda. Não pouco gorda, mas muito gorda, dessas que quando a pessoa observa a cara, despreparado, ouve uma buzina estatelando de fundo como um aviso para não se assustar, mas era simpática, aliás, como toda gorda, pois não tinha outros elementos de sedução e sua bunda formava uma espécie de V pálido que contrastava frouxamente com a cor da lâmpada acima de sua cabeça descolorada, propositalmente acompanhando raízes de dois centímetros da cor original, seus braços lembravam um leitão em breve ser abatido, as pelancas na base das axilas eram quase separadas do corpo, por assim dizer.
- Prazer. – Frederico não havia reparado antes o quanto Gislene era gorda.
- Aqui está muito barulho. Muita gente falando. A gente estava pensando em ir pra casa fazer uma festa. Estão á fim? – Disse Cida, mãos na cintura.
- Vamos. Mas vamos depois – disse Honório – tenho que convidar uma amiga antes. – Balbuciou ressentido.
- Olha, vou desenhar um mapinha pra vocês. É assim...
Cida pediu uma caneta para Gislene. Essa tirou de uma bolsa que dava a impressão de ser realmente pesada, um trambolho. O chacoalhar das coisas lá dentro era extremamente irritante, até titilante, diria. Havia barulho de metal, de escova, do caralho a quatro, entregou para a amiga.
- Fica aqui. É pertinho, dá pra ir a pé.
- Sem problema. Carro.
- Então.
Quando as duas se afastaram, Frederico puxou Honório pelo braço:
- Trepa a gorda?
- Nem fodendo, Frederico. Essa correria é favor pra você pegar a Cida. Vou passar na casa da Virginia. Sempre dá pra comer ela na hora que eu quiser. Aproveito e chamo o Astolfo, ele encara a gorda.
- Astolfo? Virginia? Astolfo é um cara de barba, cabelo curto, narigudo?
- É.
- Vou morar com eles. Mudo semana que vem.
- Coincidência. Já conheceu a Virginia então...
- É. Vamos?
Chegaram na casa de Virgínia. Apenas a luz do corredor estava acesa.
- Talvez estejam dormindo, Honório.
- Não tem problema. Eu chamo.
Honório gritou o nome de Virginia e Astolfo. Ambos estavam acordados, mas demoraram a atender. Quando Astolfo apareceu com a cara na janela, Honório gritou a idéia.
- Quem é? – Virginia perguntou da sala.
- Frederico! O próprio! – Interviu.
- Ai. – ela veio correndo, com satisfação, comovida, balançando as mãos.
- Tudo bem, Frederico? – e ia beijá-lo na boca.
- Filha da puta – disse Frederico esbofeteando a cara de Virginia – Não fale mais comigo, não tem mais namoro, não tem mais nada.
O sangue se solidificara na base do pé, mudando um pouco de coloração, parecia que não ia escorrer mais e Honório tomou consciência do que estava acontecendo, pois já haviam coberto a cara de Frederico com um papel de pão, mas os miolos haviam espalhado tanto que não dava como cobrir, pedindo água, não foi ouvido. Todos estavam preocupados em organizar as idéias para falar devidamente á policia, ou tentar entender como o sangue espirrou tanto da face do amigo a ponto de atingir uma lata de cereais na estante da cozinha. Uma viatura depois de vinte minutos. Um gordo, de sardas no pescoço, vermelho, e suado como um porco, o segundo com cara de militar mesmo, meio quieto, barba inexistente, esperando oportunidade para uma leve contestada ou mesmo para matar alguém naquele dia tão anódino, e um outro ainda, que ficou no carro.
- O que é isso? Não chamaram a ambulância? – Disse o policial gordo gritando e expelindo baba pela boca.
- Não. Eu conferi, ele está morto. Não vê que levou quatro tiros na cara? – Disse Padrinho.
O policial ergueu o papel de pão, curvou a cabeça para o lado esquerdo, como quem procura um ângulo melhor.
- É mesmo. Que nojo... Tem alguém da família? Vamos pro distrito. Ninguém sai daqui. O Sargento Bartolo fica pra esperar a ambulância e alguém vem comigo. Testemunha, vai...
- A Virginia vai. Namorada dele. – Astolfo falou.
- Última recomendação: ninguém toca no morto, entenderam? Ninguém! – Falou o guarda segurando o braço direito de Virginia.
Virginia entrou na viatura em estado de choque, não sabia o que acontecia, não chorava, não movia os olhos quando as risadas dos dois policiais na sua frente embolavam com o barulho do carro que balançava devido à alta velocidade e conseqüentemente a fazia lembrar das trepadas com o namorado morto, enchendo Virginia de um tesão repentino e estimando, de imediato, ser violentada pelos oficiais que iriam parar numa estrada deserta fingindo uma emergência, sendo tudo por demasiado perfeito que não cometeria uma desmoralização ao falecido advindo estupro, pensou, bem como raramente tomava consciência do fato, em relampejos de milésimos de um fragmento minúsculo de tempo, queria saltar, fugir de toda aquela situação, pular na pista. Mas não conseguia se mover, fazer nada, só conseguia sentir cada vez mais tesão com o movimento frenético do carro.
Honório ainda olhava pro morto, maravilhado, Astolfo foi lavar o rosto. Chegou até a pia e durante um momento estabilizou os movimentos segurando as laterais do mármore. Olhou o barbeador e a escova de Frederico. Pilhérico, os objetos mudam de valor naturalmente. Aquelas coisas eram: A escova e o Barbeador de Frederico, simplesmente. Mas naquela hora o valor era de preciosidade, de jóias raras, lapidadas em dor, esculturas moldadas no saudosismo, constrangimento, enfim. “Os quadros de natureza morta!”, disse olhando no espelho, admirado. Sorriu, saiu do banheiro assobiando sem ao menos se lavar.
- Astolfo, vem cá. Vou dar uma volta. Enrola aí, vou sair... Dar uma volta. Preciso andar. – Os outros presentes conversavam em aspecto acanhado, mas ninguém tomou a iniciativa de perguntar sobre a dúvida comum: a questão da lata de cereais.
Virginia acordou na delegacia, literalmente acordou, quando sentou na cadeira, percebeu com estranheza que sua calcinha estava extraordinariamente úmida, deu o telefone dos familiares, fez o Boletim de Ocorrência com pouquíssimos detalhes, já que não vira nada, quatro horas na fila, não descreveu a cena, era preciso chamar o Astolfo.
Astolfo e Honório se depararam sentados em uma sarjeta próxima ao terminal.
- Cansei dessa merda. Mataram um cara que mora comigo há três anos na minha frente. Não agüento mais essa merda, Honório. Não agüento mais. – Puxava prazerosas bolas de fumaça do cigarro, ao mesmo tempo retirando da cueca uma parte de carne do saco que havia enroscado na lateral.
- Melhor que sangrar com peixeira.
- Você tá brincando, hein, seu filho da puta? Tirando escárnio na minha cara? Vai tomar no cú, veadinho...
- Relaxa... Quer saber de uma verdade? Você não é nada, fica fazendo gracinha, causando vantagem... Sabe o que eu acho, meu velho? Acho que você pensa que é o gênio da amizade. Você não é o gênio da amizade. Não é nunca vai ser. Pára de ser assim tão falso, olha pra você mesmo. Que vergonha. Acha o quê? Que todo mundo vai parar o que está fazendo para olhar para você, seu mimado? Egoísta, você é muito egoísta.
- Sou um gênio, mas não da amizade. – Falou Astolfo em tom de brincadeira, mas percebendo depois a real ofensa do amigo, fechou o sorriso agora murcho.
- Olha bem, cara. Olha bem as coisas que você anda fazendo Astolfo. Pare.
- Porra, e a amizade?
- Amizade. Fala como se fosse uma puta amizade. – Começou a se descontrolar - A polícia tá procurando você, Astolfo. Deixou a Virgínia naquela situação, tava em estado de choque. Volta lá e ajuda ela.
- Razão. Irei lá dar o depoimento – perdeu o controle emocional - e vou embor’ daqu’ dess’ lug’... Maldito.
Encheu a boca de ar, inflou as bochechas e foi soltando aos poucos. Saiu sem cumprimentar nem falar nada, apenas saiu.
Honório demorou mais a sair, precisava de subsídios intelectuais para continuar fragmentado o trajeto, se localizar, tentou em seu espectro, numa total fragilidade de gozos sem êxito, o fim de recuperar a jornada para casa. Pensou em um anão escuro, pelado com uma vaca tatuada no peito, sendo o mamilo esquerdo o nariz da vaca e o mamilo direito, a ponta do rabo.
Foi embora.

A Estimável Casa de Alcides (Romance) - Parte II: Arco

Anos recomendando retângulos passados sem o desértico fenômeno acústico da fala, inclinados estão no impróprio realço de suas vidas, adornavam encontros, simulavam trezentos, mas a peripécia do segmento habitual foi impetrada, pois embora precisassem buscar uma idéia primeira, que fosse, pairavam agora no mercado, entre jabuticabas por kilo, o reencontro, Honório perguntou como Astolfo estava, Astolfo inquiriu a mesma espécie de letras pro Honório e bastaram-se em pesar as batatas, certo que a morte do amigo estava asfaltada, papelões do fichário, que nos levou ao caso da mãe de Honório falecer na mesma semana, por motivos cardiovasculares ou de cabeçalhos amórficos a qualquer pessoa mista, praxe, Honório que não conhecia o pai verdadeiramente sentiu por ela, e numa espécie de salvo-conduto toda a fabulista, ateou fogo ao seu armário, condizendo pedais pela casa finita, gritou pelas ruas até o entardecer, pulou no rio, amarrou dois gatos de rua atropelados no pescoço e ameaçou estuprar uma velha que abaixava para jogar comida aos passarinhos. Depois de preso e contestado e liberto por pequeno prazo, foi encaminhado ao conselho da situação, situado na mesma cidade, em mesmas frenéticas pontes filódicas de pedais apetecidos adornados pela ventura de antes, ou sabes, pelas idéias pseudoesclarecidas. Nenhuma pessoa ouviu falar da pensão de Dona Alcides, por acaso? Lá era essa mulher uma deusa, uma fadaria insaciável, uma líder residencial implacável, e de muito bom gosto pelo trato de visitas, carcomeram uma fortuna do estado para bem socialmente satisfazê-la no cumprir de suas responsabilidades, com figura inabalável, mão forte nos alisares, estado bruto na concepção frigorífica e a única certeza de adoração total, mas no bem, Honório não tinha ainda esse conhecimento, que por acaso, desligava de seus vícios, mas foi encaminhado a fazer uma visita ao local, visita não, estaria talvez preso da necessidade do sentimento imortal de rasura fixa nesse espaces de caies e prazeres mentais, mas, com certeza não era uma estadia breve já que chegou encaminhado pela federação. A casa no campo era de repouso, de restituição social, abrangente até para as mentes menos sociáveis que bisavam remordes. Vladimir, o porteiro, dava as boas vindas na acepção de uso, no ambicionar prestativo.
- Bem vindo... Sr?
Honório chegou escoltado por dois policiais e sem algemas, sorridente até, mas em seus olhos a falta de compostura, asseio, conflito mental e coerência física eram notáveis a qualquer paciente mais experiente e com graus de melhora superiores.
- Meu nome é Honório.
- Sim, sim, eu sei. Vladimir, mas todo mundo aqui me chama de Porteiro.
O caso-arrizos era de legá-lo o mais rápido possível, para Dona Alcides, sobre as primeiras idéias e sobre quem deveria supervisionar o brocardo, foram escaladas bravas três pessoas de antecedência, e a sala de entrevista estava pronta já, sua coloração era propositalmente esverdeada, com vacas e coisas do pasto desenhadas por cima da massa da parede com caneta por outros pacientes mais íntimos de Dona Alcides, escrivaninha em madeira maciça protegida por lei, fruto de operação ilegal, recuperada pela polícia florestal e encaminhada á federação, que por sua vez, transformava em objetos para uso das instituições, pois nessa mesa, havia oito cinzeiros, um porta-retrato, um telefone vermelho e umas quatro ou cinco folhas espalhadas, o carpete, confeccionado ali mesmo pelos residentes, de cor bege pálida, tinha figuras geométricas curtas aparentemente sem nexo, uma janela enorme ficava de costas para com a mesa presa, martelada no chão, veja bem, da onde se via todo o pátio de recreação, cheiro de amoníaco e sala extremamente fechada, com a única janela soldada, os arquivos, sim, esses eram bem trancados, sendo três trambolhos de aço os receptores, uma cadeira em couro larga para as ancas de Dona Alcides e alguns poucos quadros de réplicas esdrúxulas. Honório sentou na cadeira supervisionada por um policial e observou todos os movimentos do olho do mesmo, pairava, voltava, seguia inerte em tresloucadas vinganças pessoais pelo ambiente. Alguns zumbidos de insetos eram marcantes em sua demasia enfirulada numa recose que sortiu o questionar da guarita por alguns jorros profusos, sendo que o mesmo só olhou com ar de reprovação.
- E a demora?
- Logo vem.
Marcou compassos semi-abertos entre a sola dura do sapato e o ladrilho, assoviou, estertor frenético, e enfim, quando o próprio guarda já queria se esvair do ponto também, eis que brota do acesso a chamada que se fez em corpo, Dona Alcides. Vai se foder, filho de uma puta, essa velha maldita – refletiu Honório estalando cada osso de suas mãos, será preciso mais do que um trago para agora calar a frenética dança de seus movimentos peristálticos, soltando sebo, cumprimentaram-se, e a entrevista se resumiu em um simples bem vindo. Nas antecâmaras do ambiente, os quartos no corredor único, com números pares na esquerda e impares na direita, onde na porta há um espaço para uma lousa, para pôr o nome do residente, muitas ocasiões escrito por ele mesmo, em giz, ás vezes colorido, sendo a casa situada em uma cidade do litoral da Bahia, mas longe do mar, embora haja alguns dizeres que nas raras noites de silêncio, pode-se ouvir o som da água batendo nos rochedos, compassadamente. Uma espécie de granja, por assim dizer, que se resume estruturalmente em quatro partes psicológicas-fisicas: casa, propriamente dita, quintal anterior, quintal posterior e as hortas. A casa não tem andares, é toda gorada branca, com alguns tons alaranjados nas laterais, e se for observada por um pardal, se apresenta em forma de Y de haste fechada. A parte superior desse Y, são duas entradas que desembocam na mesma cancha, mas com colocações diferentes, a ala direita é a formal, a portaria, os escritórios, a diretoria, e a ala esquerda, de acesso restrito aos funcionários, são espécies de “solitárias”, mas não com o mesmo rigor de carceragem, são, sim, pessoas, que de alguma maneira, não podem ter contato com o mundo exterior, há também nessa ala esquerda umas partes em acesso, a biblioteca e o almoxarifado, já o “caule” desse Y são os quartos, o Y mesmo é desproporcional, pois o “caule” tem cinco vezes o tamanho das alas, largura também diferente, onde ao seu longo repousam cadeiras, sofás, aparelhos de TV, bebedouros, etc, tal corredor produz um grande eco quando alguém grita de seu princípio, verossímil escorregadia falha, de burrices, magras, nas veridicidades, o arquiteto reside no quarto noventa e dois, com o quadro de “espolaridade amorfa” sem concessões, indubitavelmente. Abobas, ameixeira, tangerineira, limoeiro, maracoteiro, cajuzeiro, e demais frutas entre bancos brancos bem fixos na terra, onde pardais são os pássaros que mais habitam e cantarolam, no lugar chamado “as hortas” há plantações rasteiras de condimentos e algumas leguminosas, uns em forma de “N”, outros, mais simples, em formas de “I” , esse lugar fica á direita da ala direita, uma piscina de diferentes profundidades ao lado da ala esquerda com banheiros, o quintal posterior de um gramado aparentemente infinito se não fosse a cerca final, antes de alguns bancos, onde parece que o céu repousa no chão, o quintal anterior, mais simples, com alguns canteirinhos, alguns adorninhos, enfim. Mas adiante, conforme as narrativas forem se passando, descreverei melhor o ambiente, por hora está bom, visto que é muito rico para interromper de tanto a narração dos fatos, Honório foi levado até seu quarto pelos policiais, além do porteiro e da diretora, havia três funcionários, um responsável pela alimentação, outro pela recreação e um médico na maioria das vezes ausente, no caminho para o quarto Honório parou para beber um copo de água e viu um sujeito parado, enbasquecido, entarcionado, com a pele amarela, babava e entortava a cabeça para o lado, tentou dialogar.
- Oi.
- Geares Pecos! Frentes Faltem! Saberoni fretou!
- O quê é isso?
- Fores fresasse desce resta? Vinde? Trutas guinas gelam, vendes.
Os policiais apressaram Honório, o funcionário responsável pela recreação, que os acompanhava, surrou o nome do residente que era José, seu nome Francisco, na função de funcionário da casa a ao menos trinta anos e José, residente, vinte e dois, raspava as ancas sem propósito na parede, para modos mais aguçados, segurando no corrimão da descida, assoviando, uma melodia em flauta podre em som e odor, já que faltavam dentes, deslizou assim até o fim do corredor. Seu quarto era o último, tinha sido desocupado por uma ex-funcionária doméstica, que morreu ano passado, e havia matado seus patrões, sua irmã, o cunhado e o açougueiro. Quarto duzentos e dois, martelado, cravado para sempre aquele número até que se mudasse a coordenação e diretoria presente ali desde a fundação, quarto de Honório em sua estadia. Conferiu a batedura da cama e falou “é boa”, deitou-se, ouvindo gritos no corredor desandou a dormir com benevolência, depois de um único e longo suspiro encerrado, pensando estar pendurado em um pomar qualquer da região sul, mas estava na Bahia, ás três e meia da manhã acordado pela governanta, Dona Alcides, não quis saber da ilusória aparente, mas adornou-se mesmo assim, no modo parecer de receber as boas vindas pensãonistícas, pijama de urso azul, um negro de macacão lhe apertou as mãos desejando boa sorte, na ala esquerda, a porta, dentro, algo que lhe parecia, e muito, alguma coisa a se notar com choques e espetadas justificadas, mais de um terço da habitação ali presente, um deles saboreando sua própria fezes aos gritos dos funcionários que tentavam detê-lo, dois ao todo, cantaram uma música incompreensível, a tanta mistura de vozes incompreensíveis, trançando o silêncio perfeito ao mesmo tempo do comando da governanta, uma descida de braço.E seguiu-se as palavras dela:
- Você aceita essa como sua casa, Honório? Esses e mais tantos como seus mais próximos parentes?
- Sem opção de escolha, sim.
- Aprenderá a gostar muito daqui.
- Eu sei.
- Somos uma grande família.
- Eu...
- Percebeu? Que bom.
Dizendo isso, passou a untar o rosto de Honório com manteiga e pediu para que o mesmo se deitasse, pois fazia parte da aceitação geral e que era melhor partir desse principio mesmo, ao deitar Honório cerrou os olhos, despiu-se e cruzou os braços enquanto a Governanta pincelava com grande tom olvidado e com adequada amenidade, escorregava uma broxa verde metálica e que terminada a idéia, acendeu cinco velas dessas das mais grossas para rezas em defuntaria e pôs a pingá-las no rosto do novo hóspede que se levantou num salto abrupto e perguntou o quê vinha a ser tamanha estranheza de uma autoridade estadual que lhe respondeu oras se quiseres saber de quantos “es” compõe-se um livro, deve primeiro lê-lo e contá-lo na calmaria de estar preso eternamente ao domingo de manhã. Fizeram ares de reprovas ante a admiração do púbere internado e o toque de dormir foi anunciado por um dos funcionários de enfermaria no que na manhã seguinte, Honório comeu pães amassados com sopa de batata e mandioquinha dando pequenas pausas apenas para tomar água no tentame de diluir o excesso de sal, não quis vestir-se, atravessou o corredor de ceroulas e descalço, onde o chão gelado dava pontadas como crianças que cutucam um senil dormindo ou mesmo um gato morto e percebia-se realmente se fazendo notar desperto, e teria chegado até o fim não fosse um sujeito entrando em sua frente e dizendo que como era de se esperar não sabia o que fazer não é mesmo, mas que acalmasse porque era tudo muito simples e fácil naquele local, ninguém dependeria da sorte ou boa vontade de qualquer um, mesmo esse qualquer um sendo um grande qualquer um e que poderia andar com as próprias pernas e dedos congelados, se assim o desejasse, dentre dois ou três dias, mas por mesmo se a idéia fosse orar nos primeiros momentos, precisaria de supervisão. “Aqui ocupamos o tempo e só. Pode ser com qualquer coisa, desde que não faças mal a ninguém e não se machuque, e sim... pedimos por gentileza, quando o hóspede é dotado de algum senso de razão, que não se masturbe no gramado”. Como pôde perceber a maioria dos internos estavam na sala frontal, aonde começa a grande haste do Y, o centro de toda a estrutura esquelética. Havia apenas uma Tv e dois sofás, um deles onde cabem exatamente três pessoas de tamanho médio, de frente ao objeto, e outro onde quase cabem duas, do lado esquerdo de quem senta, e outros ainda, mais pessoas agitadas percorrendo um lugar á outro no acanhado ambiente, sem se comunicar, e os quais os funcionários tentavam levar para fora a fim de banhá-las em um pouco de sol. Honório quis aproveitar aquele bom dia solar e pediu para voltar ao quarto, ao fim de calçar umas sandálias, o sujeito sorriu como quem diz espera digo o quê. Quis sair urgentemente para fora, fazia um pouco de frio durante o período da tarde nos interiores das residências naquela época do ano, mesmo lembrar estando na Bahia e dirigiu as sandálias como um ex-estudante de engenharia mecatrônica para a piscina ao lado da ala esquerda, caricaturalmente. Entender como ninguém se afogava ali, naquela imensa banheira suja, deixou Honório durante tempos entretido, o coco ardendo, a boca seca, sóis remoídos nas imagens de uma gorda de maiô branco que se divertia com intensidade ao atravessar a piscina de uma ponta a outra, afundando no meio da piscina e reaparecendo ritmicamente, no tempo que se dava para cogitar que ela apareceria e sim, aparecia, caminhando como antes, num vagar molengo... Percebeu que não era o único a observar tal feito do qual ela parecia não se enfadar, os enfermeiros ratuscavam piadas entre si e pensavam qualquer aposta, e um outro sujeito gordo também observava, sentado sumamente febril, um sênior dos literatos, um gordo de cinqüenta e tantos anos, óculos com aros pretos e grossos, camisa florida de turista americano, bermuda e um copo. Olhou para Honório, como quem reconhece um novato e pede a retórica.
- Posso sentar aqui? – Disse Honório.
- Tá vazia, não?
- Prazer, Honório.
- Félix. Mas me chame de Gericáult, meu sobrenome – falava com um sotaque quase imperceptível – todo mundo quase sempre me chamou assim. Ignore meu sotaque... Sou francês. Primeiro músico, depois médico. Clarineta. Conhece?
- Não.
- Enfim, vim clarinetista com as despesas de meu pai. Tudo muito barato na Bahia, virava dinheiro alto o câmbio. Não trabalhava e vivia bem. Conheci Michele, com quem infelizmente casei, ela é baiana do bairro do Pelouro, de Salvador. Fez-me largar o instrumento, vendeu o diabo, brigou com meu pai por mim, sem ele entender uma palavra, mas compreendeu o tom, pois cortou a mesada e aí entrei na universidade federal da Bahia e fiz medicina, quase trinta anos atrás... Cá estou. E você? Porque está aqui?
- Prefiro não dizer.
- É?... Eu também não. Casa de repouso, né?
- Hum... – Disse Honório, chocho.
...
- Gosta de filosofia?
- Conheço pouco.
- Sartre?
- Pouco, mas ouvi falar que ele revolucionou a pedagogia moderna, mesmo na condição de filósofo, algo assim...
- Olha... Falo como médico, mas também como alguém que ouviu demais das outras profissões. Alguns pedagogos alegam que a visão de Sartre das relações humanas é, por demais, restritiva. Veja, em seus textos são excluídas todas as possibilidades de convívio íntimo, benevolência e compreensão como tais e sendo assim, seus apontamentos não podem servir como alicerce educacional, de um prisma libertário ou não.
- Como assim?
- Me perdoe palestrar, amigo. Honório, né? É... Mas Sartre vê as relações humanas como necessariamente hostis. Essa hostilidade se inicia na idéia do que é um ser humano e do que é o "Outro". Para Sartre, o ser humano é liberdade, entende? O ser humano, que existe em si, nada mais é do que seu próprio projeto livremente escolhido, um sujeito que organiza objetos ao seu redor como tentativa de realizar intentos livremente escolhidos. Com a entrada do "outro", a liberdade sofre limitação. O ser humano torna-se um objeto aos olhos do “outro” e só pode recuperar sua natureza de sujeito se, por sua vez, tornar o Outro um objeto. Círculo vicioso inevitável, como se vê, o relacionamento humano é intrinsecamente conflituoso... Gosto dessa palavra, “intrinsecamente”... Enfim, alega-se que o conflito se agrava pelo fato de que, no esquema sartreano, é impossível a dois sujeitos compartilhar um ponto de vista comum, o que nega a relação professor-aluno no sentido de descoberta intrapessoal. Isso elimina a compreensão mútua e, além disso, elimina a possibilidade de critérios objetivos ou intersubjetivos de aprendizagem. A pedagogia não mais existe, entende?
- Diz você, então, que a falta de comunhão elimina a compreensão?
- De fato, o próprio auxílio do professor ao aprendiz, está completamente fora de questão, é uma má-fé ao principio existencialista sartreano. Porém, a posição de Sartre a respeito das relações humanas decorre de sua concepção do ser humano e da existência. Embora, os pedagogos anti-sartreanos erram na compreensão das relações humanas porque também erram ao tentar compreender a existência segundo Sartre. É uma coisa pura de lógica, amigo. Tão óbvia que dói.
- Compreensão do existencialismo?
- Segundo Sartre, obviamente, por que ele é, foi e sempre será o existencialismo mais avançado. Nega as barreiras, ao mesmo tempo em que as impõe, coisa troixa, eu acho no particular... Ver o “Outro” como o ser pelo qual eu me torno objeto? Enfim...
- Interessante, mas vou dar mais uma volta.
- Me desculpe. Por favor, desculpe esse velho falastrão. Gosto de conversar. Pego pessoas pra cristo e você é o único que me ouviu até o fim. Vai ouvir muitas palestras minhas ainda. He-he-he.
- Não vejo a hora. – disse com desdém.
Espreitou a piscina e a coloração dos ladrilhos, andou em torno dela, fazia frio baldado ás rumas para se entrar ali; observou mais alguns pacientes e julgou estar entediado demais para conversar com os sem juízos nenhum, e a única coisa para ocupar os olhos era a gorda de maiô branco, mas aquilatou ao notar-se cansado daquilo lá e sentou novamente ao lado de Gericáult, vencido.
- Com Sartre? – Disse este sorrindo.
- Por favor... – Refutou Honório, sério.
- Certo... Olha jovem, vou te falar um pouco dessas semanas, não quero te alugar com o que eu vi durante esses anos todos, mas somente com essa semana. Uma semana hein... Já viu o quarto 23? Aquele com um desenho numa placa de um submarino todo torto pendurada na porta?
- Não. Qual?
- Quinto. Á esquerda. Pois bem, dia 17, uma terça, acho, quase duas semanas antecedentes á sua vinda, morava uma senhora de noventa e dois anos naquele quarto.
-... E?
- Trabalhava em recreação. Exercitava os músculos. Era um exemplo. Pregava alguns trabalhos de madeira, bem feitos, por sinal, oficinas comandadas pelo Josuel. Ele era voluntário, ainda o é na verdade. Por fim, ela tinha acesso ao almoxarifado. Sofria de aneurisma. Raspou a cabeça na máquina, á tarde. Os enfermeiros estranharam, mas não viram muitos perigos. Embora velha e paciente, conservava um bom juízo julgado pelos demais. Á noite começou a cravar pregos na cabeça. Á marteladas. Um por um, com calma, sem gritar, ninguém ouviu nada...
- Que coisa mais horrenda.
- Primeira lição, rapaz. Nada aqui é horrendo, pois saiba... O pior não foi isso. O pior é que ela estava viva de manhã, com oito pregos fixados na cabeça, até a haste, o sangramento totalmente estancado. Sentou para tomar café da manhã normalmente, veio andando devagar, bem devagar, olhando pro nada. Ocorreu um alarde geral. E a velhinha lá, tranqüila... Morreu no hospital, quase cinco horas depois, sem pronunciar uma palavra. Dizia Schopenhauer: “Desviemos um instante os olhos de nossa própria inteligência e de nosso limitado horizonte para a compreensão”.
- Que coisa...
- Quer saber? Pois pra mim morreu bem. Conseguiu um feito, digno de admiração dos profissionais de medicina: a perfuração de um crânio sem uma broca, sem anestesia e desviada de pontos de complicação sem o conhecimento da literatura destinada á isso. Só errou ao acertar a massa encefálica. – Ri um pouco - Pois veja, com o auxílio de um bisturi e uma espátula de raspagem, descola-se o couro do crânio de forma a tornar limpo e evidente todo o osso temporal, sabe? Aí, com um paquímetro, ou qualquer instrumento de medição que sirva para isso, mede-se a distância entre os dentes incisivos superiores e a parte superior do Atlas. Atlas é a primeira vértebra cervical, não os mapas, hein? Feita a medida, divide-se o valor obtido por 6,91, de onde se obtém a profundidade da perfuração, para serem atingidos os nervos coclear e vestibular, referente ao vestíbulo do ouvido. Coloca-se a broca na porção medial do processo mastóideo, na linha de seqüência da sutura lambidal, e marca-se um ponto para início da perfuração nos hemisférios direito e esquerdo. Com o uso do aparato, é possível guiar-se a furação, para serem atingidos os objetivos desejados, compondo com ele o guia para inclinação da broca de dois dos três ângulos. O terceiro ângulo é conseguido visualmente, orientando-se a perfuração rumo ao centro do conduto auditivo externo, para o nervo coclear; ou rumo à tangente superior interna do mesmo conduto, para se atingir o nervo vestibular. A perfuração é iniciada à meia velocidade, para evitar-se o aquecimento do osso. Após os primeiros 3 a 4 milímetros de perfuração, a broca está na cavidade da fossa subaquata. Nesse ponto, com a broca parada, posicionam-se adequadamente os ângulos da furação para o término da operação. Com a prática, pode se desprezar o uso do aparato. Com a broca dentro da fossa subaquata, é muito comum jorrar algum sangue pela perfuração, o que cessa em poucos instantes, permitindo a continuidade, mas é preciso cuidado nessa fase, pois o tecido cerebelar acha-se muito próximo e sem qualquer obstáculo impedindo assim um possível trauma. Atingido o objetivo, pode-se, com uma seringa, sugar a massa nervosa desejada, que já foi rompida com facilidade pela ponta da broca. Mais cuidado é necessário para o uso de agulhas coletoras de sinais, pois deve se atentar mais para a precisão de forma a atingir-se o conduto do nervo sem que este seja lesado. A velha devia ter feito isso. Mas pregou a cabeça mesmo, fazer o quê...
- Você é um filho da puta, Gericáult.
- Prazer, Honório. Agora sou eu que vou andar. Na verdade dormir, acordar ás dez da noite. Sabe...Há anos troco o dia pela noite. Vou te dizer, á noite, nas madrugadas, esse lugar é muito mais interessante. Recomendo-te, amigo.
- Vou lembrar.Até mais.
Levantou-se retirando a sunga do rego.

A Estimável Casa de Alcides (Romance) - Parte III: Ponte

Pareceram séculos, mas foram somente algumas horas ficando sentado e boquiaberto em frente á piscina, a gorda fez a mesma coisa durante todo sazão, quando uma fila de espectadores se formou aos poucos e Honório viu entretido e entediado todo o processo enquanto Vladimir, o porteiro, ria com animalejo, apontando e ficando encarnado, mas a enfermagem presente não, conservaram-se infringíveis. Os barulhos eram de pratos e de passos a maior parte do tempo, ria-se bastante também, mas na sua maioria funcionários e voluntários, que paravam uma hora, porque se algum paciente ria, era o que sempre ria e desatava a rir por horas, variando apenas a intensidade, nunca a altura ou a expressão e se variasse, era mero descuido; porém uma defesa sempre soa clara e profissional demais não sendo vinda de homem em aparência. Cagou limpando-se refletivo. Sorriu ao badulaque fálico na entrada. Do banheiro. Foi até o quarto, despiu-se, sentou na beira da cama. Batidas improlíficas na porta. Era Gericáult que lhe deu um caderno em branco e uma caneta. O melhor jeito de se passar o tempo, dizia ele. Honório rabiscou essas linhas:
Não existem mais culpas. Eu nunca vi acontecer e não foi por falta de tentativas. Nada me pareceu tão agressivo e medíocre em toda a minha vida. Nada. Apenas frases dispostas de um jeito que originou repulsa. Deixo pra quem tentar, quero distância. Edouard Lalo faria melhor. Saint-Säens faria melhor e Berlioz então, nem se fale. Melhor que os outros dois. O objeto principal da sala, os elementos e a culpa. Tudo fez parte de um caleidoscópio crítico e sincero que me deixou embrutecido. Deveria tratar melhor a cabeça antes daqui. Tive um professor no colegial que dizia que eu devia tentar o celibato. Coitado, botei fé. Mataria de desgosto o primeiro mestre, tamanha minha explosão egocêntrica. Mas devo esquecer, concentrar-me nos monstros japoneses atrás de mim. O trabalho. A única salvação é a transformação do trabalho. Escrever, pintar, carregar bugigangas do Paraguai, sabe-se lá. Qualquer coisa que fizer, fazer até desgastar a cabeça do cacete. Trabalho, de péssima qualidade, mas trabalho. Às vezes penso se não pode ser uma desculpa. Ler. Ler ajuda. De algum jeito o objeto me ajuda. Reverência e capricho. E o ridículo fato de pedir um bombardeamento de vida ás duas da manhã olhando pro lado, deitado na cama? Maldito caminho. Maldita condição. Falta mais amor e perdão. Agora sim, desencana. Birra e trajeto. Tchau. Beijos.
Achou uma merda, rasgou a página, escreveu na que seguia ainda batida de lápis da página anterior: Titulo: Diálise Não Tropical. Primeiro parágrafo:
Comunicação? Esquece. Trabalho. Ultimamente venho ofendendo muito, mas faz parte da estirpe característica. Quatro latas de cerveja em estômago vazio. Minhas diálises não-tropicais me levam a isso. Porque diabos um não-tropical, sendo que sou latino? A vida ás vezes prega peças fantásticas. Veja bem, um rato. Um rato de nome Maijon procura um queijo. Não o acha, vai seguindo em seu labirinto mesotópico. Não encontra o que deseja, e segue. E segue. E vai. Passa por uma ratoeira, duas, três e na quarta se estabaca. Fica agonizando na armadilha. Força os pequenos olhinhos para localizar o queijo. O localiza a poucos centímetros, mas está preso. Concentra-se então em morrer olhando o queijo, de forma poética. Mas, há outros ratos. Centenas, todos procurando queijos no labirinto mesotópico. Deparam-se com outros ratos mortos na ratoeira. É sua vez, há mais de cem ratos. E ao invés de ajudá-lo, aproveitam que está com a cara semi-esmagada no objeto pontiagudo feito de metal, agonizando, e descarregam seus espermas em seu ânus que está exposto, sem Maijon poder fazer nada. Essa é a Diálise que vos falo.

Achou uma merda, rasgou a página, escreveu na que seguia ainda batida de lápis da página anterior:
Nunca soube ao certo como iniciar um prefácio, um livro, um conto. Introdução, meio, final. Como um jogo de xadrez ou como uma música de vários meios, mas somente um começo e fim. Às vezes acredito que só existam os meios, o restante a gente toma como inicio ou fim, mas é um meio. Se tomarmos um meio como fim, chega a ser o meio de um fim, uma apóstrofe um In eternus, ou uma porra qualquer que desemboca em outra historia. Nesse sentido, não existe linearidade, por isso odeio tanto cinema. O ideal de historias juntas, contadas, descartadas, esquecidas, apagadas por óbito, que seja. Mas a sagacidade, a extrema ironia de um Machadão, de um Kafka, de um Oswald, de um Barroqué que com facilidade burlam esse sistema medíocre da escrita, abrindo leques gigantescos de percepção sobre o acontecimento descrito, isso é tão complicado que deixo aqui a posição de reles verme pútrido rarefeito sujo de merda, esperma e escarro sobre a estrada de terra batida, verme preso nos fluídos, atropelado por um jegue enquanto fugia do peão da chácara do Zé Inocêncio. Mas como dizia o mestre Geraldo: “Tá a fim de fazer cagada, faz duma vez, caralho! E já que vai fazer cagada, faz de acordo!”.
Olhou para a página, gostou. Iniciaria um romance.