domingo, 1 de junho de 2008

A Estimável Casa de Alcides (Romance) - Parte I: Terminal

Final de jogo, ônibus demorando, sol onde havia um resto da noite na camisa de Honório. Pergunta: - Calor?
- Muito.
- E a demora desse ônibus?
Dá uma pequena bufada, olha pra senhora que virara o rosto, quem sabe devido ao perfume deleitoso de seu sopro, e completa: - Eu não sei. Honório chegou quando havia a passagem exata, ofertada minutos antes por severas insistências, para a ocasião, os dois reais. A troca de ônibus no terminal bem vinha, devido ao dinheiro calculado, no interior, o ônibus vazio, o cobrador badala, ironicamente, sobre a celebração dos franceses em uma televisão em uma loja qualquer que os poucos tripulantes, talvez quatro, um tão ausente ao ambiente que quase não se conta, se encaram sem articular palavra, quando no ponto antes do terminal, ele desce, alguns passos retinidos, lembrou que a casa era próxima, queria andar por entre aquele cheiro de mijo que o bairro tinha. - Casa! Havia uma moça-adenina na garagem que discorria ao celular. Se ela não ficar com asco, pelo menos arrisco – Pensou. Perguntou se havia sobras no domicílio, pão, há de comer no geral, a qual hesitou em estranheza e comunicando ele a brincadeira perguntou se havia alguém na casa, que procurava por Astolfo ou Virginia.
- Quem é? – gritaram da cozinha que tinha a janela de frente pra rua. – É o Zidane. – Se for o Honório, entra não.
- Peraí, vou pegar lá a chave pra você – disse a moça, bem afrescalhada, empinou-se ao saber que era conhecido e vestia uma camiseta com a palavra Puppi estampada em tons róseos, com a chave demorando, estava tendo uma comemoração que já não era mais comemoração, perda de jogo, a casa exalava um cheiro de episódio, carbonizado talvez, combinado com uma fragrância barata que enojava qualquer ser passante e ainda por cima havia o cheiro do bairro. Enquanto desfigurava relevante sobre os cheiros e conseqüências, ficou pensando no cumprimento, se seria correto dar um beijo no rosto, pois Honório ficava ininterruptamente com essa anfibologia subentendida ao cumprimentar uma fêmea. Enfim, não deu, a modo de praxe. Aquela passada pela sala com pausa de observação ao objeto multicolorido, notório, e ida para a cozinha, sala de estar em comemorações.
- Fala Astolfo. O que vocês estão fazendo aí?
- Arroz. A carne vai sair. Frederico tá tentando um apimentado. – apontou para a mesa. - Até hoje não acertou. E ontem o que você fez?
- Fui parar no centro. Quando acordei tava lá. – molhou o dedo no copo disposto ao lado esquerdo para saber a substância presente ali, provou, limpando na blusa estalou dois dedos da mão direita, abriu uma lata de cerveja do refrigerador. Era tradicional a comemoração naquela casa, certo, ás vezes havia cerveja, ás vezes não havia nada, apenas truco com Astolfo peidando e gritando alto no blefe, enquanto metade das nádegas ficava submersa nas calças e a outra metade suada brilhando com a luz, refletindo o ambiente qual espelho. Honório saiu da cozinha deslizando o chinelo, como se anunciasse sua ida até o quintal. Seis ou sete pessoas, uma churrasqueira improvisada com tijolos, instalada no piso da área e uma pequena área verde ao fundo, construída acima do solo, com quase dois metros por um, para a plantação de pimenta e repolho, todos sentados com exceção de Frederico, que cuidadosamente colocava alho triturado em conserva numa panceta. Honório ofereceu cerveja a Frederico que engoliu muito veloz e ainda arrotou sem barulho – É Boa.
- Você. Conheço você.
- Não. Não sei. – disse com tom arrastado, atenuado, quase soltando cerveja pelo canto esquerdo da boca, não era costume ser por mulheres abordado.
- Meu nome é Marcela. Ouviu sobre mim? – Aquele papo já estava irritando Honório - Você faz o quê?
- Sou estudante de engenharia mecatrônica. E você?
- Sou puta.
- Muito bom. Legal, anima o pessoal. Foi contratada para o quê precisamente?
- Não fui contratada. Sou amiga de Roberta, aquela ali, – disse apontando o dedo indicador para uma ruiva sentada no chão Honório nunca havia visto Roberta. Não morava naquela casa mais conhecia o circulo inteiro dali, as dez pessoas isso se não calhar exagero. Dirigiu-se até Roberta.
- Roberta? Como vai. Honório. – Pensou novamente se devia beijar a face da mulher, mas hesitou novamente.
- Olá.
- E aí? Quanto é o programa, ou já foi acertado?
- Quanto é o programa? Sou cabeleireira. O quê?
- Sua amiga ali. Achei que trabalhavam juntas.
- A Marcela? – Gargalhou escandalosamente – Não, brincadeira. Ela trabalha comigo no salão, manicure.
A parábola não foi bem-vinda, afastou a esperança gorada, no caso uma ligeira batida na porta do lado de dentro da casa persistia. Astolfo, na cozinha, olhou pela janela de frente ao portão enquanto enxugava uma colher de vinagrete, onde um homem de aparentemente quarenta anos se debatia aferventado e onde ele, Astolfo, cerrava bem a vista para atingir o drama, o homem pedia pão, Astolfo se removeu para providenciar alguns. Ao abrir a porta, o sujeito estava ao pé dela, perpendicular, mirando um revólver em sua cara: Oi. Entraram. Dois. Apenas Astolfo estava dentro da casa. Todo o restante estava no quintal, com exceção de Padrinho que estava dormindo, um sujeito mais tarde.
- Chama o Frederico pela janela.
Astolfo com mais precisão sentia as artérias, compassadas devido ao nervosismo e euforia, a ponto de não perceber que o ladrão (dois, o outro observava permanecendo semicataléptico) sabia o nome de um dos moradores. Chamou o amigo pela janela com um dos invasores encostando o revólver em suas costas. Quando Frederico entrou na cozinha, o ladrão que pedira pão já não era mais um ladrão, este olhou fixamente, e como se estivesse derramando aos jatos a mais legítima urina, atirou quatro vezes na cabeça de Frederico. Na primeira caiu no chão, nos tiros seguintes o assassino disparou a um ângulo de 40 graus aproximadamente tomando distância, progressivamente, para que o sangue espalhasse bem, tirando sórdido proveito daquele momento em espasmos do mais puro orgasmo. Saíram os dois na cabriola, como se, finalmente, foi-lhes revelada a obtenção do prazer pela força, em que Padrinho acordou, cambaleante, de cuecas perguntando de quem havia sido o gol. Enquanto Virginia ligava para a Polícia, perguntas repulsivas e martelantes dos que olhavam o corpo no chão, este em precários minutos disseminou o cheiro de morte pela sala, aos poucos ganhando mais espaço, encontrando seu ambiente. Cheiro enojado, de sangue, pólvora e fezes já que Frederico cagara nas calças após o primeiro tiro. Na cabeça de Honório as cenas de quando conheceu Frederico, há três anos atrás, foram se formando progressivamente, meio que sem aspirar, enquanto contemplava o sangue no chão, que formava desenhos geométricos de total simetria e contumácia devido ao formato do piso, cintilando mil vezes mais em seus olhos. E o rastro? Como era bonito seu deslize, seu caminho, vivo, semipulsando, lindo.
- Passa esse copo.
- Como?
- Prazer, Frederico.
- Honório.
- Viu aquele cu? Maravilha.
- Qual? Cida. O Nome dela é Cida.
- Lá.
- Vai mesmo?
- Vou.
- Vou junto. Tá com uma amiga.
Frederico também era estudante, a raça mais bócio, portanto, execrava ser definido estudante e quando alguém perguntava o que ele fazia, dizia consecutivamente a frase cometida: Sou acionista da bolsa de valores. Estudante. Tem muito estudante “nunca foi estudante”, era uma magnificência sem fim, um presságio de sucesso sem valores, uma pachouchada no tratamento imperdoável para com aquele sujeito.
- Oi Cida. – Honório conhecia.
- Oi.
- Esse aqui é Frederico.
- Oi. Essa é minha amiga, Gislene.
A amiga era gorda. Não pouco gorda, mas muito gorda, dessas que quando a pessoa observa a cara, despreparado, ouve uma buzina estatelando de fundo como um aviso para não se assustar, mas era simpática, aliás, como toda gorda, pois não tinha outros elementos de sedução e sua bunda formava uma espécie de V pálido que contrastava frouxamente com a cor da lâmpada acima de sua cabeça descolorada, propositalmente acompanhando raízes de dois centímetros da cor original, seus braços lembravam um leitão em breve ser abatido, as pelancas na base das axilas eram quase separadas do corpo, por assim dizer.
- Prazer. – Frederico não havia reparado antes o quanto Gislene era gorda.
- Aqui está muito barulho. Muita gente falando. A gente estava pensando em ir pra casa fazer uma festa. Estão á fim? – Disse Cida, mãos na cintura.
- Vamos. Mas vamos depois – disse Honório – tenho que convidar uma amiga antes. – Balbuciou ressentido.
- Olha, vou desenhar um mapinha pra vocês. É assim...
Cida pediu uma caneta para Gislene. Essa tirou de uma bolsa que dava a impressão de ser realmente pesada, um trambolho. O chacoalhar das coisas lá dentro era extremamente irritante, até titilante, diria. Havia barulho de metal, de escova, do caralho a quatro, entregou para a amiga.
- Fica aqui. É pertinho, dá pra ir a pé.
- Sem problema. Carro.
- Então.
Quando as duas se afastaram, Frederico puxou Honório pelo braço:
- Trepa a gorda?
- Nem fodendo, Frederico. Essa correria é favor pra você pegar a Cida. Vou passar na casa da Virginia. Sempre dá pra comer ela na hora que eu quiser. Aproveito e chamo o Astolfo, ele encara a gorda.
- Astolfo? Virginia? Astolfo é um cara de barba, cabelo curto, narigudo?
- É.
- Vou morar com eles. Mudo semana que vem.
- Coincidência. Já conheceu a Virginia então...
- É. Vamos?
Chegaram na casa de Virgínia. Apenas a luz do corredor estava acesa.
- Talvez estejam dormindo, Honório.
- Não tem problema. Eu chamo.
Honório gritou o nome de Virginia e Astolfo. Ambos estavam acordados, mas demoraram a atender. Quando Astolfo apareceu com a cara na janela, Honório gritou a idéia.
- Quem é? – Virginia perguntou da sala.
- Frederico! O próprio! – Interviu.
- Ai. – ela veio correndo, com satisfação, comovida, balançando as mãos.
- Tudo bem, Frederico? – e ia beijá-lo na boca.
- Filha da puta – disse Frederico esbofeteando a cara de Virginia – Não fale mais comigo, não tem mais namoro, não tem mais nada.
O sangue se solidificara na base do pé, mudando um pouco de coloração, parecia que não ia escorrer mais e Honório tomou consciência do que estava acontecendo, pois já haviam coberto a cara de Frederico com um papel de pão, mas os miolos haviam espalhado tanto que não dava como cobrir, pedindo água, não foi ouvido. Todos estavam preocupados em organizar as idéias para falar devidamente á policia, ou tentar entender como o sangue espirrou tanto da face do amigo a ponto de atingir uma lata de cereais na estante da cozinha. Uma viatura depois de vinte minutos. Um gordo, de sardas no pescoço, vermelho, e suado como um porco, o segundo com cara de militar mesmo, meio quieto, barba inexistente, esperando oportunidade para uma leve contestada ou mesmo para matar alguém naquele dia tão anódino, e um outro ainda, que ficou no carro.
- O que é isso? Não chamaram a ambulância? – Disse o policial gordo gritando e expelindo baba pela boca.
- Não. Eu conferi, ele está morto. Não vê que levou quatro tiros na cara? – Disse Padrinho.
O policial ergueu o papel de pão, curvou a cabeça para o lado esquerdo, como quem procura um ângulo melhor.
- É mesmo. Que nojo... Tem alguém da família? Vamos pro distrito. Ninguém sai daqui. O Sargento Bartolo fica pra esperar a ambulância e alguém vem comigo. Testemunha, vai...
- A Virginia vai. Namorada dele. – Astolfo falou.
- Última recomendação: ninguém toca no morto, entenderam? Ninguém! – Falou o guarda segurando o braço direito de Virginia.
Virginia entrou na viatura em estado de choque, não sabia o que acontecia, não chorava, não movia os olhos quando as risadas dos dois policiais na sua frente embolavam com o barulho do carro que balançava devido à alta velocidade e conseqüentemente a fazia lembrar das trepadas com o namorado morto, enchendo Virginia de um tesão repentino e estimando, de imediato, ser violentada pelos oficiais que iriam parar numa estrada deserta fingindo uma emergência, sendo tudo por demasiado perfeito que não cometeria uma desmoralização ao falecido advindo estupro, pensou, bem como raramente tomava consciência do fato, em relampejos de milésimos de um fragmento minúsculo de tempo, queria saltar, fugir de toda aquela situação, pular na pista. Mas não conseguia se mover, fazer nada, só conseguia sentir cada vez mais tesão com o movimento frenético do carro.
Honório ainda olhava pro morto, maravilhado, Astolfo foi lavar o rosto. Chegou até a pia e durante um momento estabilizou os movimentos segurando as laterais do mármore. Olhou o barbeador e a escova de Frederico. Pilhérico, os objetos mudam de valor naturalmente. Aquelas coisas eram: A escova e o Barbeador de Frederico, simplesmente. Mas naquela hora o valor era de preciosidade, de jóias raras, lapidadas em dor, esculturas moldadas no saudosismo, constrangimento, enfim. “Os quadros de natureza morta!”, disse olhando no espelho, admirado. Sorriu, saiu do banheiro assobiando sem ao menos se lavar.
- Astolfo, vem cá. Vou dar uma volta. Enrola aí, vou sair... Dar uma volta. Preciso andar. – Os outros presentes conversavam em aspecto acanhado, mas ninguém tomou a iniciativa de perguntar sobre a dúvida comum: a questão da lata de cereais.
Virginia acordou na delegacia, literalmente acordou, quando sentou na cadeira, percebeu com estranheza que sua calcinha estava extraordinariamente úmida, deu o telefone dos familiares, fez o Boletim de Ocorrência com pouquíssimos detalhes, já que não vira nada, quatro horas na fila, não descreveu a cena, era preciso chamar o Astolfo.
Astolfo e Honório se depararam sentados em uma sarjeta próxima ao terminal.
- Cansei dessa merda. Mataram um cara que mora comigo há três anos na minha frente. Não agüento mais essa merda, Honório. Não agüento mais. – Puxava prazerosas bolas de fumaça do cigarro, ao mesmo tempo retirando da cueca uma parte de carne do saco que havia enroscado na lateral.
- Melhor que sangrar com peixeira.
- Você tá brincando, hein, seu filho da puta? Tirando escárnio na minha cara? Vai tomar no cú, veadinho...
- Relaxa... Quer saber de uma verdade? Você não é nada, fica fazendo gracinha, causando vantagem... Sabe o que eu acho, meu velho? Acho que você pensa que é o gênio da amizade. Você não é o gênio da amizade. Não é nunca vai ser. Pára de ser assim tão falso, olha pra você mesmo. Que vergonha. Acha o quê? Que todo mundo vai parar o que está fazendo para olhar para você, seu mimado? Egoísta, você é muito egoísta.
- Sou um gênio, mas não da amizade. – Falou Astolfo em tom de brincadeira, mas percebendo depois a real ofensa do amigo, fechou o sorriso agora murcho.
- Olha bem, cara. Olha bem as coisas que você anda fazendo Astolfo. Pare.
- Porra, e a amizade?
- Amizade. Fala como se fosse uma puta amizade. – Começou a se descontrolar - A polícia tá procurando você, Astolfo. Deixou a Virgínia naquela situação, tava em estado de choque. Volta lá e ajuda ela.
- Razão. Irei lá dar o depoimento – perdeu o controle emocional - e vou embor’ daqu’ dess’ lug’... Maldito.
Encheu a boca de ar, inflou as bochechas e foi soltando aos poucos. Saiu sem cumprimentar nem falar nada, apenas saiu.
Honório demorou mais a sair, precisava de subsídios intelectuais para continuar fragmentado o trajeto, se localizar, tentou em seu espectro, numa total fragilidade de gozos sem êxito, o fim de recuperar a jornada para casa. Pensou em um anão escuro, pelado com uma vaca tatuada no peito, sendo o mamilo esquerdo o nariz da vaca e o mamilo direito, a ponta do rabo.
Foi embora.