domingo, 1 de junho de 2008

A Estimável Casa de Alcides (Romance) - Parte III: Ponte

Pareceram séculos, mas foram somente algumas horas ficando sentado e boquiaberto em frente á piscina, a gorda fez a mesma coisa durante todo sazão, quando uma fila de espectadores se formou aos poucos e Honório viu entretido e entediado todo o processo enquanto Vladimir, o porteiro, ria com animalejo, apontando e ficando encarnado, mas a enfermagem presente não, conservaram-se infringíveis. Os barulhos eram de pratos e de passos a maior parte do tempo, ria-se bastante também, mas na sua maioria funcionários e voluntários, que paravam uma hora, porque se algum paciente ria, era o que sempre ria e desatava a rir por horas, variando apenas a intensidade, nunca a altura ou a expressão e se variasse, era mero descuido; porém uma defesa sempre soa clara e profissional demais não sendo vinda de homem em aparência. Cagou limpando-se refletivo. Sorriu ao badulaque fálico na entrada. Do banheiro. Foi até o quarto, despiu-se, sentou na beira da cama. Batidas improlíficas na porta. Era Gericáult que lhe deu um caderno em branco e uma caneta. O melhor jeito de se passar o tempo, dizia ele. Honório rabiscou essas linhas:
Não existem mais culpas. Eu nunca vi acontecer e não foi por falta de tentativas. Nada me pareceu tão agressivo e medíocre em toda a minha vida. Nada. Apenas frases dispostas de um jeito que originou repulsa. Deixo pra quem tentar, quero distância. Edouard Lalo faria melhor. Saint-Säens faria melhor e Berlioz então, nem se fale. Melhor que os outros dois. O objeto principal da sala, os elementos e a culpa. Tudo fez parte de um caleidoscópio crítico e sincero que me deixou embrutecido. Deveria tratar melhor a cabeça antes daqui. Tive um professor no colegial que dizia que eu devia tentar o celibato. Coitado, botei fé. Mataria de desgosto o primeiro mestre, tamanha minha explosão egocêntrica. Mas devo esquecer, concentrar-me nos monstros japoneses atrás de mim. O trabalho. A única salvação é a transformação do trabalho. Escrever, pintar, carregar bugigangas do Paraguai, sabe-se lá. Qualquer coisa que fizer, fazer até desgastar a cabeça do cacete. Trabalho, de péssima qualidade, mas trabalho. Às vezes penso se não pode ser uma desculpa. Ler. Ler ajuda. De algum jeito o objeto me ajuda. Reverência e capricho. E o ridículo fato de pedir um bombardeamento de vida ás duas da manhã olhando pro lado, deitado na cama? Maldito caminho. Maldita condição. Falta mais amor e perdão. Agora sim, desencana. Birra e trajeto. Tchau. Beijos.
Achou uma merda, rasgou a página, escreveu na que seguia ainda batida de lápis da página anterior: Titulo: Diálise Não Tropical. Primeiro parágrafo:
Comunicação? Esquece. Trabalho. Ultimamente venho ofendendo muito, mas faz parte da estirpe característica. Quatro latas de cerveja em estômago vazio. Minhas diálises não-tropicais me levam a isso. Porque diabos um não-tropical, sendo que sou latino? A vida ás vezes prega peças fantásticas. Veja bem, um rato. Um rato de nome Maijon procura um queijo. Não o acha, vai seguindo em seu labirinto mesotópico. Não encontra o que deseja, e segue. E segue. E vai. Passa por uma ratoeira, duas, três e na quarta se estabaca. Fica agonizando na armadilha. Força os pequenos olhinhos para localizar o queijo. O localiza a poucos centímetros, mas está preso. Concentra-se então em morrer olhando o queijo, de forma poética. Mas, há outros ratos. Centenas, todos procurando queijos no labirinto mesotópico. Deparam-se com outros ratos mortos na ratoeira. É sua vez, há mais de cem ratos. E ao invés de ajudá-lo, aproveitam que está com a cara semi-esmagada no objeto pontiagudo feito de metal, agonizando, e descarregam seus espermas em seu ânus que está exposto, sem Maijon poder fazer nada. Essa é a Diálise que vos falo.

Achou uma merda, rasgou a página, escreveu na que seguia ainda batida de lápis da página anterior:
Nunca soube ao certo como iniciar um prefácio, um livro, um conto. Introdução, meio, final. Como um jogo de xadrez ou como uma música de vários meios, mas somente um começo e fim. Às vezes acredito que só existam os meios, o restante a gente toma como inicio ou fim, mas é um meio. Se tomarmos um meio como fim, chega a ser o meio de um fim, uma apóstrofe um In eternus, ou uma porra qualquer que desemboca em outra historia. Nesse sentido, não existe linearidade, por isso odeio tanto cinema. O ideal de historias juntas, contadas, descartadas, esquecidas, apagadas por óbito, que seja. Mas a sagacidade, a extrema ironia de um Machadão, de um Kafka, de um Oswald, de um Barroqué que com facilidade burlam esse sistema medíocre da escrita, abrindo leques gigantescos de percepção sobre o acontecimento descrito, isso é tão complicado que deixo aqui a posição de reles verme pútrido rarefeito sujo de merda, esperma e escarro sobre a estrada de terra batida, verme preso nos fluídos, atropelado por um jegue enquanto fugia do peão da chácara do Zé Inocêncio. Mas como dizia o mestre Geraldo: “Tá a fim de fazer cagada, faz duma vez, caralho! E já que vai fazer cagada, faz de acordo!”.
Olhou para a página, gostou. Iniciaria um romance.