quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Cena urbana n.4

Uma árvore que produz jacas. O homem apareceu no ponto de ônibus com uma longa cabeleira despenteada e amarrada por um laço, um papel com um endereço na mão e um sobretudo preto, chamando a atenção por estar um calor de trinta e seis graus, a sombra do sobretudo poupava os olhos de uma velha raquítica, além disso, ele também estava de óculos escuros e se melhor reparado, percebia-se um cabelo saindo de suas duas orelhas, cabelo este que era puxado para trás, por cima das mesmas e amarrado junto ao cabelo. Ele tinha aquele problema desde moleque, e já havia feito um tutorial escrito á mão: "Certifique-se de que suas mãos estejam limpas e livres de suor e gordura, então corte o excesso de pêlos do ouvido, limpe bem a parte interna das orelhas e remova a oleosidade utilizando um algodão umedecido em álcool." Lembrava que quanto mais fazia isso, mais grossos e fortes os pêlos cresciam. Mas já contava com quarenta e cinco anos e aquilo começava a virar um verdadeiro incômodo, principalmente na repartição que trabalhava. Decidiu então tentar a sorte num aclamado médico de nome Toonie Sheltie e carregava o endereço consigo, esperando o onibus "Brasilândia - Perus".
Ao entrar no ônibus pensou no trajeto porque nunca havia mostrado real interesse em ir atrás disso. Quem sabe não poderia deixar tais pêlos crescerem de vez? Soube de um indiano que bateu um record mundial com isso. E por mais que cortasse, em pouco mais de uma semana eles já estavam de volta, mais grossos, volumosos e reluzentes, transparecendo a luz tal um espelho de loja de antiguidades. Ao entrar no consultório, esperou pelo médico, que tinha um forte sotaque inglês e uma cara retorcida e avermelhada. O saudou simpático, como um gordo falastrão, e após um rápido exame, completou com um português que saia como se tivesse o parido um platelminto: "Pode ser causada por fungos no cônduto auditivo que acomete, ou mesmo uma seborréia. Pode ser causada, também, por fatores externos como umidade e calor. Mas duvido que seja uma hipertricose generalizada congênita." O formalismo do português do inglês potencializou ainda mais a sensação desconfortável que o paciente sentia. "Você não estaria, por acaso, com um calor? Com esse casaco deveras grande?" Respondeu um não taxativo e seco. "Tem cura?" "Precisamos saber exatamente o quê acomete. Tem sentido dores? Secreções?" Respondeu novamente um não, mas que secreções eram constantes. O médico perguntou a coloração delas. Ele disse que amarronzadas, claras. "Bem, amigo - sorriu o gordo simpático de jaleco - o tratamento e a gestão consiste na depilação, repetidos barbeares, métodos depilatórios, branqueamento e diatermia. Nada mais além disso podemos nós fazer".
O paciente foi embora extremamente aborrecido. As palavras formais e mal articuladas daquele inglês ressoavam em sua mente. Pareciam vibrar nos pêlos de sua orelha, um a um. "Especialista, o caralho" disse um pouco alterado dentro do ônibus. Uma jovem de vinte e poucos anos que estava de pé o olhou, mas não com ares de reeprendimento, mas de compaixão. Porém uma compaixão misturada com um certo nojo e repulsa. Aquilo a excitava de um modo nunca antes sentido. Ele começou a se sentir incomodado com o jeito que ela olhava. "Posso me sentar?" Aquela pergunta o pegou desprevenido, qual ele tentou abrir a boca de um jeito rídiculo, ela já havia se acomodado. "Me chamo Juliana e você?" "Carlos". Carlos sentiu uma necessidade imensa de esconder os pêlos da orelha, pensou que devia ter saído de boné, e mais, ao sair do consultório esqueceu de amarrar os fios junto ao cabelo, deixando longas mexas suadas e rebeldes despontando da orelha. Não se incomodava tanto com a anomalia desde que era garoto no colégio. Agora, ele ficava tentando virar o rosto, tentando de algum modo esconder aquilo. Juliana falava, falava, falava, ele tinha que responder, responda algo, rápido, o quê ela perguntou mesmo? "Sim." Foi isso. Saiu um sim. Um longo, articulado e sonoro sim, apenas. Seja o quê ela havia perguntado, tinha encaixado bem, pois ela sorriu satisfeita. Após um pequeno intervalo ela levou a mão direita até a orelha de Carlos, ele petrificou. Com os dedos indicador e polegar ela começou a enrolar os fios da orelha esquerda de Carlos. Bem devagar e carinhosamente. Ele virou lentamente os olhos para ela. O suor começava a cair. Fitando seu rosto, ele não conseguia definir aquela expressão. Era um expressão carregada de uma mãe que perde seu único filho, de uma criança excitada com a chegada dos primos, de uma pessoa que aliviava um pus sanguinolento numa vasilha após horas de agonia, de alguém que havia levado uma picada de marimbondo nos testículos. Um misto de tudo isso e algo mais. Carlos não conseguia mais falar nada, nem esboçar reações. A mulher acionou o botão para descer no próximo ponto. Puxou carlos pelos pêlos da orelha até sairem do veículo. Andaram duas quadras sem dizer nada. Carlos atropeçava a cada cinco minutos, e já não pensava mais na orelha e sim na ereção que teimava em não vir. Na casa de Juliana, ela o jogou na cama e retirou toda sua roupa, mas impediu Carlos de tirar a dele. Ficou então se esfregando nos pêlos de Carlos, freneticamente, e empurrava a cabeça com violência para experimentar também o outro lado. Carlos começou a gemer e ela teve um orgasmo escandaloso enquanto a orelha de carlos jorrava um líquido marrom claro, farto. Carlos levantou. Em pouco menos de 2,8 segundos ela começou a tremer na cama, em posição fetal, soltando grunhidos agonizantes e chorando baixinho. Começou a chorar mais quando ele se virou e disse: "Vou tomar um banho, amor, e volto logo".

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Cena urbana n.3

Uma árvore que produz jabuticabas. O senhor apareceu no ponto de ônibus trajando uma roupa de esportista de meia-idade, uma carta na mão esquerda, a sombra da carta repousava até a metade de seu shorts e haviam rugas inumeráveis em seu rosto. Olhou para a mulher que ouvia música com fones de ouvido, voltou-se novamente com o olhar para a rua e respirou forte. Parecia preocupado e mordia os lábios como que apreensivo. Não chamou muita atenção até que saiu caminhando em direção é rua. Ouviu-se buzinas, gritos e lamúrias. O velho embaixo do pneu traseiro de uma pick-up. O trânsito parou. Visivelmente ele ainda respirava. Alguns curiosos sairam do comércio, os carros que passavam devagar ao lado recheavam suas janelas de rostos perplexos, todos os presentes no ponto de ônibus vidravam seu pensamento para a carta do velho que continuava pressionada em sua mão, até que ele a afrouxou num "ai" apagado, primeira palavra que pronunciara. Só então se relaxou por completo e morreu. Seus olhos ficaram abertos, olhando diretamente para uma criança, uma menina que não esboçava reação alguma, apenas o olhava de volta seriamente. Uma mosca pousou em seu olho. Pela primeira vez ouviram sirenes se aproximando. A velocidade de resposta se dava pela localização central do ponto. A menina andou demoradamente até o velho, todos olharam sem repreensão. Pegou calmamente a carta caída ao chão. Voltou ao ponto e sentou, acomodando os joelhos. Tirou um lápis roxo de sua bolsa e começou a desenhar na parte de trás do envelope. Ficou desenhando até que um dos paramédicos veio tirar a carta de sua posse. A menina respondeu tentando morder a mão do profissional. Causou estranhamento, e dessa vez a investida para pegar o papel foi mais brusca. A menina gritava e chorava de ódio, mas devido ao tamanho do paramédico, a menina cedeu, ficando apenas a olhá-lo com uma profunda raiva, um ódio flamejante.
- Valdir, guarde junto ao corpo.
- Que menininha mais feia. - Disse valdir olhando a menina, de aproximadamente seis anos, que respondeu mostrando o dedo médio de mão fechada.
Já no IML, o velho despido, as roupas, relógio e carta despejadas num recipente imundo de plástico, os médicos e legistas conversavam sobre o fato do idoso não estar portando carteira, nem identificação. Esperariam um tempo até a família aparecer, dar por sua falta, ou então abririam a carta, coisa que julgavam anti-ético por se tratar claramente de uma carta de suicídio endereçada á uma pessoa específica. Os desenhos roxos indecifráveis atormentavam ainda mais os legistas, como que inconscientemente impediam sua abertura e davam um ar semi-cômico e assustador á cena geral. Um deles acabou por virar a carta no recipiente de modo que não se viam os desenhos. Os outros positivaram o feito com um silêncio. Passou-se uma semana. Decidiram abrir a carta. A curiosidade tomou conta de quase todos os legistas do IML. A sala parecia uma festa do pijama, todos vestido de branco. O cúmulo chegou-se a dar quando um dos médicos repousou um copo plástico de café sobre o peito do defunto, sendo alarmado pouco depois por um dos colegas. Quando pegaram os pertences, a carta havia sumido. Num outro ponto, alguns meses depois, uma velha aparentemente abalada esperava de pé um ônibus com uma carta na mão. Avançou para a rua e foi atropelada. Ao soltar a carta, ela tombou revelando desenhos roxos na parte de trás, soltando um único e apagado "ai".

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Cena urbana n.2

Uma árvore que produz maçãs. O homem apareceu no ponto de ônibus trajando um terno preto, uma maleta clássica na mão esquerda, a sombra da maleta descansava até a metade de suas pernas e seus cabelos eram grisalhos, quase prateados.Não fazia contato visual nenhum com quaisquer dos transeuntes ou das pessoas que esperavam a locomoção. Não parecia sorrir, embora levantasse um pouco os lábios superiores, como se palitasse os dentes com a língua e devido ao formato de seu rosto julgava se tratar de um oriental. Estava naquele ponto por cerca de meia hora, aquele sol de duas horas da tarde da maior cidade da américa do sul repousava generoso em sua cabeça, reluzia todos os fios e parecia incomodar todos ali, apenas via-se um rastro de suor escorrido de sua fronte que o homem não enxugou. Essa gota, após rolar demorosa, acelerou-se depois do queixo vindo a sumir na camisa branca do terno. O homem chamava a atenção. Vero fato. Chamou maior atenção em particular á um idoso que esperava um ônibus que costumava demorar. Tinha visto todos os ônibus pararem ali e somou o fato de que em nenhum deles era o do homem de terno, talvez esperasse o mesmo, quando um Jaguar cinza XKR S passou e parou perpendicularmente á maleta do homem. Ao abrir a porta, o velho notou mais quatro asiáticos vestidos da mesma forma. O carro parou em frente á uma casa amarelada e desgastada com a humidade, de trancas enferrujadas. Duas buzinadas. Cerca de um minuto e meio depois, esperados pacientemente com o carro ligado, um homem ocidental desceu. Ao abrir a porta, via-se as escadas para o andar superior. Entregou dois pacotes amarrados igualmente por uma fita vermelha e o símbolo do chujak, o pássaro que simboliza o sul. O carro seguiu para a parte mais baixa do Bom Retiro, parando no jardim da luz. Desceram dois homens, os outros dois continuaram no carro. Ficaram parados ali. Dentro do carro os dois trocaram duas palavras. Pararam num comércio coreano. A mulher gritava histericamente enquanto os homens se dirigiam ao fundo da loja. Os dois homens eram o da maleta e um que andava mancando e possuia uma bengala que fazia muito barulho a cada estocada dada no piso formado por tacos. Chegando os dois ao fundo da loja, num pequeno quarto, um velho coreano estava atrás de uma mesa com cara de espanto. Tentou tocar na gaveta, um dos homens jogou sua bengala que acertou a mão do velho em cheio. Ele gemeu. O homem sem bangala encostou as costas na porta para impedir que a mulher histérica conseguisse abri-la. O outro homem lançou os dois pacotes encima da mesa. O velho hesitou. O homem de terno então abriu a maleta e retirou uma pistola, cromada, da marca Captain, e apontou. O velho abriu o pacote. Dois dedos de mulher no primeiro, ambos os mindinhos. No outro pacote, uma foto de uma garota sendo estrupada por sete homens. O velho gritou: "Ttal!" e avançou no homem que respondeu apenas com um soco. O velho se contorceu com o golpe, virando no chão. Resmungou palavras que não agradaram os dois homens. Um foi até o vaso. O velho gritou de mãos levantadas. O jarro foi ao chão revelando grande quantia de dinheiro. O homem de pistola pressionou-a contra a testa do velho: - Annyonghi kaseyo, Geseki.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Cena urbana n.1

Uma árvore que produz pêssegos. A mulher apareceu no ponto de ônibus trajando uma roupa beje, quase apagada, a sombra de sua sobrinha descansava até metade de seu corpo. A menina tinha tinta em seus cabelos, tinta sem espaço para crescer com mais comodidade desde a raiz genoflexória. A tia propôs uma brincadeira para entreter a menina que não parava de falar. Ela tinha que pronunciar corretamente a palavra oftalmotorrinolaringologista. A cada tentativa, uma velha senhora sorria oferecendo balas de cacau e canela. Essas são muito ardidas, a tia dizia, e colocando as mãos de unhas pretas de sujeira retirava cada casca de canela que envolvia as balas e então oferecia para a menina. As cascas eram engolidas de uma vez pela tia e o sol era de duas horas da tarde. Ambas iam para o limão, visitar o exmarido, antigo tio. a velha dizia ter agrafobia, mas o dizia entre dentes, pois a excitação era visível em seus olhos mareados. quem era ela para ter fobias? A tia citou as fobias de seu nome: Claudete. Essa sim eram fobias, e jurava ter todas: Cacorrafiofobia, Caetofobia, Cainofobia, Catagelofobia, Catapedafobia, Catoptrofobia, Cenofobia, Cimofobia, Cinetofobia, Cipridofobia, Coniofobia, Cosmicofobia, Crometofobia ou crematofobia e por aí ia. A velha planteou o rosto dois centímetros acima dos olhos da tia. Calor infernal até o fim do dia. O ônibus "Vila Nova cachoeirinha - Avenida Celestino Bourroul" parou. A sobrinha se negava a subir até recitar corretamente a palavra. Nada que dois petelecos na orelha de mão fechada não resolvesse. Não havia assento, Claudete concluiu: Não há lugar para a neutralidade. Neutro em opressão se apóia algo injusto. A senhora tinha manias de esclarecer tudo para a menina, batendo-a quando não concordasse ou não fingisse atenção. Ao chegar até a avenida, desceram e seguiram a pé. Era perto dali. A tia acendeu um cigarro catingudo, respirou forte, apertou as mãos da menina sem querer. Esta tapava as narinas com cara de nojo a cada baforada, a tia não via, ou não demonstrava abalo, sua visão estava fixa no prédio á sua frente. Não terminou o cigarro. Jogou quase inteiro no chão e pisou, entrou no prédio. Com quem? Roberto. Quinto. Ok. Entrou no elevador. "Sua filha." e entregou para o ex-marido. "A mãe disse para não ficar bebendo na frente dela" e ia saindo. "Claudete?" Roberto falou. Ela virou lentamente, "Diga á sua irmã que sinto muito".