segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Cena urbana n.3

Uma árvore que produz jabuticabas. O senhor apareceu no ponto de ônibus trajando uma roupa de esportista de meia-idade, uma carta na mão esquerda, a sombra da carta repousava até a metade de seu shorts e haviam rugas inumeráveis em seu rosto. Olhou para a mulher que ouvia música com fones de ouvido, voltou-se novamente com o olhar para a rua e respirou forte. Parecia preocupado e mordia os lábios como que apreensivo. Não chamou muita atenção até que saiu caminhando em direção é rua. Ouviu-se buzinas, gritos e lamúrias. O velho embaixo do pneu traseiro de uma pick-up. O trânsito parou. Visivelmente ele ainda respirava. Alguns curiosos sairam do comércio, os carros que passavam devagar ao lado recheavam suas janelas de rostos perplexos, todos os presentes no ponto de ônibus vidravam seu pensamento para a carta do velho que continuava pressionada em sua mão, até que ele a afrouxou num "ai" apagado, primeira palavra que pronunciara. Só então se relaxou por completo e morreu. Seus olhos ficaram abertos, olhando diretamente para uma criança, uma menina que não esboçava reação alguma, apenas o olhava de volta seriamente. Uma mosca pousou em seu olho. Pela primeira vez ouviram sirenes se aproximando. A velocidade de resposta se dava pela localização central do ponto. A menina andou demoradamente até o velho, todos olharam sem repreensão. Pegou calmamente a carta caída ao chão. Voltou ao ponto e sentou, acomodando os joelhos. Tirou um lápis roxo de sua bolsa e começou a desenhar na parte de trás do envelope. Ficou desenhando até que um dos paramédicos veio tirar a carta de sua posse. A menina respondeu tentando morder a mão do profissional. Causou estranhamento, e dessa vez a investida para pegar o papel foi mais brusca. A menina gritava e chorava de ódio, mas devido ao tamanho do paramédico, a menina cedeu, ficando apenas a olhá-lo com uma profunda raiva, um ódio flamejante.
- Valdir, guarde junto ao corpo.
- Que menininha mais feia. - Disse valdir olhando a menina, de aproximadamente seis anos, que respondeu mostrando o dedo médio de mão fechada.
Já no IML, o velho despido, as roupas, relógio e carta despejadas num recipente imundo de plástico, os médicos e legistas conversavam sobre o fato do idoso não estar portando carteira, nem identificação. Esperariam um tempo até a família aparecer, dar por sua falta, ou então abririam a carta, coisa que julgavam anti-ético por se tratar claramente de uma carta de suicídio endereçada á uma pessoa específica. Os desenhos roxos indecifráveis atormentavam ainda mais os legistas, como que inconscientemente impediam sua abertura e davam um ar semi-cômico e assustador á cena geral. Um deles acabou por virar a carta no recipiente de modo que não se viam os desenhos. Os outros positivaram o feito com um silêncio. Passou-se uma semana. Decidiram abrir a carta. A curiosidade tomou conta de quase todos os legistas do IML. A sala parecia uma festa do pijama, todos vestido de branco. O cúmulo chegou-se a dar quando um dos médicos repousou um copo plástico de café sobre o peito do defunto, sendo alarmado pouco depois por um dos colegas. Quando pegaram os pertences, a carta havia sumido. Num outro ponto, alguns meses depois, uma velha aparentemente abalada esperava de pé um ônibus com uma carta na mão. Avançou para a rua e foi atropelada. Ao soltar a carta, ela tombou revelando desenhos roxos na parte de trás, soltando um único e apagado "ai".