sexta-feira, 21 de março de 2008

Joaquim

Joaquim não entendia a exclusividade e parecia não aceitar ser o único que possuía duas personalidades distintas e independentes dentre os componentes do seu corpo, achava natural. Descobrira quando garoto ao ouvir uma voz abaixo da linha dos olhos que então procurava, não encontrava ninguém e tão mais estranha era ela que enquanto essa mesma voz oculta falava, ele sentia vibrar o seu rosto. No mesmo dia ouviu mais uma voz e aos poucos passou a compreender a linguagem das duas narinas. Uma se chamava Jarina a outra se chamava Fascina. Direita e esquerda, respectivamente. Joaquim lamentava o fato dos diálogos serem somente internos e ás vezes repetia numa mesa de bar ou reunião quando assim o autorizassem, deste modo seus dois amigos se comunicavam com o mundo externo, mas dependentes de um mediador, no entanto, era um mundo do qual em parte já pertenciam, e ás vezes até embolsavam uma réplica ou comentário, embora fosse muito raro, e além do mais, quando desse disso, a felicidade era tanta que tratavam de comentar com entusiasmo durante a noite, ou entre eles ou com Joaquim, quase não deixando este dormir e tendo que o próprio dar um basta com um reclamão de tom mais hostil que o habitual. Porém nunca agressivo de verdade. Não. Jamais. Tudo era da boca pra fora, pois não havia alguém com quem Joaquim mais se apegasse e tivesse uma incondicional estima do que com seus dois companheiros que estavam presentes desde o início da sua vida. Não os via como uma parte pensante do seu organismo, mas como irmãos. Quando adolescente discutia na mesa de jantar, principalmente quando algum ingrediente estava claramente estragado ou passado, ou salgado demais a ponto de um olfato extremamente independente e apurado captar, olfato este que ainda possuía duas opiniões, dando mais crédito quando surgia um consenso, e isso era quase sempre e qual a mãe nunca entendeu direto e nem ao menos fez questão de. Divertia-se na divagação que julgava ser típica de uma fase da infância, até que mais tarde cederia sua posição nas discussões adultas por causa da persistência do filho. Era uma digressão inofensiva.
Joaquim hoje tem quarenta e oito anos, é solteiro e está gripado. Uma de suas últimas empregadas lhe roubava e praguejava em sua língua materna sempre que podia ou não podia, mesmo com conjunturas ou sem uma só conjuntura, mas por ele estar apaixonado, e ela sabendo ainda mais aproveitava, Joaquim fazia vista grossa para todos esses atos e aturava, paciente, os espasmos de alerta das narinas. Após um pequeno período de tempo, logo depois que ela pediu a conta, Joaquim resolveu ir no encalço ainda que com os dois amigos doentes. Procurou na central, no hospital e no xadrez. Acabou num pontilhão tanto que fez, pois veja, reconheceu-a na hora, e nem ao menos percebeu a cena que seria deplorável á um amante iludido. Ela estava discutindo com um pedinte que sem dúvida morava ali, concluiu Joaquim, pois se via claramente o estereotipo de um morador de local, pois este conversava sentado, plácido e sereno, de cócoras, á vontade, chinelos de dedo quase soltos em sua totalidade, e acendendo o filtro de uma bituca pisada, manchada de batom, ainda ostentava certa pose de anfitrião involuntário, dentro de sua caixa de papelão para geladeira com algumas redes estouradas em seu interior, item objetivo e perspicaz devido às várias funções conforme a idéia, tal como um sofá, toalha, almofada, agasalho, cabaninha ou cobertor. Ela não estava mal vestida, se levarmos em conta a média do lugar, mas fedia muito, um cheiro adocicado na respiração e extremamente ácido no final desta, como um uísque ou bebida de sabores posteriores ao gole, mas ainda fazendo parte deste. O cheiro era parecido com uma combinação de naftalina, urina e ração barata pra cachorro, mas predominava a naftalina, só que mais espessa que a original, agressiva, na mistura que talvez apresentasse uma relação de metade, mas podiam estar enganados os pequenos prodígios, inclusive eles próprios, Jarina e Fascina, confessaram essa probabilidade. Mesmo porquê a comparação vinha somente de Jarina, pois Fascina se sentia tão doente que nem quis opinar e concordou como alguém indiferente, ou seja, sem a segunda opinião ou o diálogo de achismos entre os analisadores de aromas e odores a fim de concordar em integral ou parcialmente num diagnóstico, a comparação não era confiável. Joaquim lhe falou com lagrimas nos olhos tamanha felicidade. Ela não o reconheceu e disse que por cinco contos fazia o quê lhe bem entendesse, Estavam doentes mais ainda opinavam e Jarina, que se encontrava bem mais disposto que seu companheiro, talvez por ser a napa direita, sugeriu uma proposta para apresentar a ex-doméstica. Joaquim achou legal e disse: tenho aqui não cinco, mas cinqüenta. Venha comigo que eles são seus. Ela acompanhou desconfiada com a generosidade gratuita, era muito gorda, manca e tinha duas verrugas negras como buraco de tatu á noite no mato, bem embaixo da boca, uma pegando um pedaço do lábio inferior, um pouco pro lado esquerdo, outra totalmente pro lado esquerdo, no meio da metade da cara, peluda e que parece ter carne, desproporcionando o conjunto das bochechas, das quais os irmãos narina já tiveram uma queda e desistiram por tratar-se de dois elementos inanimados, porém pensaram com mais maldade e viram a possibilidade de aproveitar, simplesmente pedindo a Joaquim o esquema, quando esse catasse a doméstica, (pedido que ele certamente atenderia), mas não acharam correto nem ético o abuso não consentido, com a ajuda de Joaquim, e prometeram pensar com análise aprofundada antes de sair cafungando com sapiência os orifícios nasais por aí. Bem, enfim nosso herói e trigêmeo siamês dominante e bem camuflado chegou em sua casa com sua amada amnésica por trauma ou doença de idade, qual esboçou alguma reação, ou melhor, umas pequenas cócegas cerebrais no local que dizem reservado á memória, precisamente na hora que viu o pote de bolachas que sempre fica no topo do armário da cozinha onde Joaquim põe moedas de troco ou dinheiro não necessário, uma sobra simbólica do dia, (Joaquim gasta pouco, o quê mais gasta mesmo é pôr capricho nas narinas). Mas tal pote rendia de tal maneira, tipo, que de grão em grão já veríamos com surpresa que Joaquim não tinha, veríamos o recipiente modesto dar um salário mínimo em duas semanas, incrível o poder sutil dos pequenos valores, mas somas assim só na época anterior á empregada e depois desta sair de serviço. Ele disse para ela tomar um banho e que daria cinqüenta reais se ela passasse o restante da tarde com ele, final desta que já estava próximo, faltando apenas duas horas e meia, pois eram três horas e quarenta e pouco, qualquer uma passaria, ainda mais sem sexo, afinal ele gostava dela e preferia, talvez ao menos inicialmente, simplesmente uma conversa e, ou, companhia. Jarina agradeceu a idéia do banho. Fascina dizia estar lotado de ranho. Ficara chato desde a doença, companhia que ficava melhor estando calada, não falava por pura demência, repuxava-se e afundava a si mesmo por birra uma que por ele era negada, todavia o impulso real se tornara quase bastante percebido que ainda cínico dizia estar entupido. Seus dois amigos sabiam da mentira e frescura latejantes porque na hora da verdade, faltando ar e secando as abas laterais insuportavelmente, respirava bem. Depois do banho o cheiro melhorara, mas estava longe de ter saído por completo. Ela sentou no sofá, ao lado de Joaquim, com um seio quase á mostra pela parte de baixo da blusa e ficou em silêncio, de pernas coladas. Jarina passou a conversar num monólogo com Joaquim, como faz sempre que as pessoas ficam quietas porque isso lhe dá uma oportunidade para falar como um louco, já que os momentos exclusivos para conversa são escassos, para não interromper o dia-a-dia do amigo, limitando-se quase sempre a conversas noturnas. Falava Jarina, o direita-narina, sobre futilidades que Fascina concordava com um fanho som perpetrando-se a entender que aquilo significava positivo, e fanhava e gemia forçando coriza ainda na tentativa de chamar a atenção, mania que foi de azucrinante e irritável á insignificante e ignorável, ainda mais por uma doença que já quase havia se extinguido. Na conversa em questão, Jarina falava sobre um programa que assistiu um dia desses enquanto Joaquim pegara no sono, que haviam descoberto uma espécie de ave que julgaram estar extinta e que acreditavam ainda existir em redutos mais de oitocentas. Ouço suas ventas, disse a Joaquim essa ex-empregada. Assustou-se. As narinas se expandiram. Uma das napas calou. Então o que ela dizia? Perguntou. Algo sobre aves. Replicou. Você é boa de chutes. Contestou. Então que ele fale de novo. Emendou. Sei que tens algum truque. Duvidou. Que truque seria? Provocou. Feitiçaria. Parodiou. A napa então adentrou, se mostrou, hesitou, observou, tornou porque quase parou, vacilou, se achou aí então concentrou, ar degustou, sim respirou, olhou, pensou, imaginou, quase cochilou, mas lembrou porque começou, se nem tentou por pouco menos não tomou aonde nunca levou, desencanou, preparou, raciocinou e se pronunciou começando enfim a formular frases sem sentido e dizê-las quase ao mesmo tempo em que as criava. A ex-empregada empregava sua máxima concentração, repetia tudo literalmente com meio segundo de atraso, perdendo ás vezes, mas sempre conseguindo retomar. Joaquim caiu aos seus pés por finalmente existir uma confirmação convincente de que ele não era louco, coisa que nunca duvidou, pois sempre soube que não era doido, ainda que nenhuma pessoa dispunha crédito na sua palavra. Não importa que a prova descoberta não servisse para as outras pessoas, pois não ouviriam a palavra emanante de sua napa e certamente julgariam que a mulher se ocupava de falar qualquer coisa de sua própria cabeça, simplesmente compactuando com a real intenção daquele que se encontrava procurando crédito. Não importava, o gosto indescritível da confirmação que todos sempre estiveram errados e que sim, cada cavidade nasal era dotada de raciocínio, de uma personalidade própria, é claro, uma para cada uma, e porquê não? Gêmeos idênticos têm os mesmos genes, foram gerados no mesmo ventre, pense e assim mesmo completamente diferente em personalidade. Depois do inevitável surto de felicidade, Joaquim esqueceu-se integralmente do sentimento que o fizera iniciar uma jornada ociosa e massiva por aquela mulher e as intenções amorosas planejadas na atualidade para aquele fim de tarde. Perguntou de tudo, e de tudo teve resposta, algumas simples, outras de buscar outras alternativas de decodificação. Fascina desentupiu-se engolindo a seco seu sólido excremento, abandonou o forjamento, e se pôs a falar feito um louco em crise delirante, sem ver nada digno de pausa, estava duplamente estimulado, pela novidade em evidência, de modo óbvio, e porque também não falava á muito tempo e havia naturalmente se esquecido como achava isso muito bom. Os três falavam muito. Ao mesmo tempo. Alto demais e muito rapidamente. Tinham inclusive, e isso já fazia um tempo, tinham inclusive esquecido o assunto principal e cada um deles iniciava vários assuntos diferentes e desconexos, assuntos sem o menor desenvolvimento, apenas expostos de maneira confusa e perceptivelmente não tinham nenhuma relevância mesmo mudando-se o contexto. Realmente banais. Aumentaram o volume físico e mentalmente de suas vozes de modo que a ex-empregada foi ficando em gradual amplitude com uma cor verdejante-branco-amarelada e no ápice da coloração passou a emitir um ruído facial estranhamente continuo, que comprovadamente não influenciava a respiração, parecia de procedência exclusiva interna e que se constituía sonoramente de uma combinação do som do “u” com o da torcida manual numa garrafa de plástico e de um rádio-relógio quando desperta fora de sintonia. Não perceberam essas mudanças tampouco pararam de falar até que a manifestação aumentou um pouco em intensidade quase que ao mesmo tempo em que sua cabeça explodiu cintilante, não fosse a impossibilidade científica nisso. Pararam de falar, um após o outro. O sangue espirrou tão expansivo e proporcional na explosão que formou um belo desenho de uma estrela de várias pontas, compridos riscos provindos do mesmo centro e que iam se afunilando. O desenho era tão grande e reluzente que pegava um pedaço da parede, onde se concluía as extremidades magnificentes de suas pontas.

domingo, 9 de março de 2008

Jarana

Me cansei de rogar-lhe, me cansei de pedir-lhe que eu sem ela de pena morro, já não quis escutar-me e se seus lábios se abriram foi para dizer-me já não te quero. Eu senti que minha vida se perdia em um abismo profundo e negro como minha sorte. Quis fechar os ouvidos ao estilo jalisco, mas aquelas bebidas e aqueles mariaches me fizeram chorar. Me cansei de rogar-lhe, e com aquele pranto em meus olhos fizera a minha copa e brindava-lhe com ela, não podia desperdiçar o último brinde de um maldito, mas de minha mão sem força caiu-me o copo sem dar-me conta. Ela quis falar algo, mas já tava escrito no meu destino que aquela noite eu entenderia para sempre a perda de seu amor.