terça-feira, 26 de maio de 2009

Cura pra dor

Ele desenhava em sua casa para vender na rua, desenhava nas ruas para não faltar em casa, nas pinturas que eram reconhecidas pelas avenidas de Porto Alegre, uma cidade tatuada das primeiras artes atuais, comprava calças para a família em Recife, siruismo da moda, vestimenta fundamental de sarlotas. Andava com segurança por entre as avenidas, passos moles de quem deve algo para alguém, de quem comprimenta com acanhamento, olha nos olhos com um sorriso patético, furibundo, se desconhece enquanto bebe, sabe de tudo de si em eloquência, se atropeça, se não ama direito, se não move um destino para outras memórias, é porque não se expressa com exatidão. Haviam gatos espalhados para ter o dinheiro de volta quando bem o quisesse, não recebia em notas abertas, não dava troca. Vivia de caricaturas no centro do teatro Pedro Parenti, na pracinha da frente. Seu dia preferido era o de quinta-feita por saber aonde iria depois do trabalho encontrando amigos disfarçados de verdadeiros, catrevólos e sorocabanos, movia as mãos ao urinar como quem se masturba, mas só passava a impressão. Sempre urinava nas calças ao voltar do banheiro, subia o shorts e descia a camisa para tampar as marcas de respingo, ás vezes a camiseta era curta e não dava conta e se não bastasse ainda voltava e bebia com indiferença. Desenhava em guardanapos e ofertava para as moças julgando estar causando boas impressões.Seu melhor amigo trabalhava numa banca, folheava os gibis com alvoroço, emprestava alguns com a condição de retornarem em perfeitas condições. Num desses dias de sol que os dois conversavam em frente á banca, o jornaleiro cobrava do desenhista porque ele não exercia sua profissão, que era a de engenheiro químico formado. O desenhista lembrava de um episódio da faculdade, que não justificaria, mas que exemplificava: "Lembro de um amigo de faculdade, o Roger. Tinha grande talento para a escrita, publicara desde jovem contos nos jornais locais, matriculara-se numa universidade federal para estudar as letras. Todos diziam que ele iria se formar com louvor, faria um doutorado, seria um dos maiores escritores brasileiros, se não, o maior da região sul. Decepcionou á todos, largou a graduação no terceiro ano, nem chegou afazer mestrado, foi cursar matemática. Pegou todas as suas teses, seu material da universidade e seus escritos, me convidou para irmos até a praça Carlos Simon Artz. Colocou todos aqueles papéis num baú, botou fogo nele e nós dois ficamos fazendo uma dança apache em volta." O jornaleiro comentou que achava que escrever era como cozinhar. Todos podiam escrever, todos podiam cozinhar e que os julgamentos nada mais eram do quê uma tentativa de hierarquizar a sociedade como ela mesma tenta desde o princípio. "Sabe, acho esse jornal do zero hora muito rabiscável. Adoro desenhar nele." "É seu", e deu o jornal ao amigo. Riram ao modo de madames entendiadas do século dezenove e combinaram sair depois das oito da noite. Um amigo farmacêutico que havia prometido uma mulher branca, fácil de esquentar e quando esquentada fazia loucuras. Um milhão, dois milhões, ele não se lembra exatamente quantos números. Quanto tomavam café ele batucava com uma colher no saleiro. O próprio farmacêutico aplicou a ampola. Decidiram sair um dia a noite á pé. O baque foi instantâneo. Achavam ter contraído uma pele de galinha depenada, Os sons de buzina se chocavam com a sensação, cacoalhavam a crista carnuda, a endotermia acelerada, perderam os dentes e as bexigas para reduzir o peso e alcançar vôo. O desenhista deu um pulo ridículo com esse propósito e bateu as mãos, o jornaleiro não riu, se concentrava na tentativa e nem se surpreenderia caso o camarada obtivesse êxito. Numa das avenidas mais movimentadas de Porto Alegre, a Borges de Medeiros, subiram o Viadulto Otávio Rocha, em forma de U, acreditando estarem imersos em gelatina. Queriam subir o Sulamérica a fim de ver a cidade de cima, tomar umas garrafas, mas foram barrados na porta devido ás suas pupilas. viram um porco correndo na rua e acharam ser alvo de alucinação, mas não o era. Um maldito porco tinha saído de não sei onde e estava correndo para não sei que lugar. Deu até no jornal outro dia sobre um leitãozinho atropelado. Ele gritava se o parceiro se sentia com sorte. Uma mesa de blackjack cairia bem, me acerte no meio do nariz. Me acerte você também. Impressionaram-se com a força da droga que transformara a pele primeiramente em pele de frango e depois em tábuas. Vocês beberam demais, disse o policial, no que ele respondeu: Você se parece com a chuva. O vigilante agarrou o jornaleiro e jogou-o na calçada. Ele lambia a lama do meio-fio. Mais uma passagem desenfrada, já estavam em outro bairro sem perceber. Ele queria pular daquele muro para cair na piscina da casa de dentro. Temia cachorros. Não se preocupe. estou olhando pra tu. Confiou no amigo. Deu um salto com a perna direita dobrada e as mãos em forma de V. Via-se seu reflexo sobre a luz interna da casa, um super-herói. Não chegou a ultrapassar o muro, caiu primeiro encima dele e depois se depositou no chão de dentro num baque seco, como se fosse um saco de feijão. O amigo olhou por cima do muro e viu o companheiro estirado, camisa rasgada, arranhões no braço, escoriações na testa. Ficou imóvel durante um bom tempo, parecendo estar morto. Nunca correram tanto, nem na época de entregas do jornaleiro, nem na época de garoto do caricaturista. Deitou no chão, ambos deitaram entravando personalidades de músculos. Sabe, apanhei hoje no terminal de ônibus. Levei dois pontos no supercílio direito e acabo de voltar do hospital. Vi um japonês de cabelo muito liso, fino e escuro azul brilhante, rosto pouco oleoso e simpatizei com ele. Tinha mais ou menos a minha idade e eu perguntei se ele tinha irmã. A Lúcia tem dois gatos. Mishi e Mishinho, odeia gente escrota com dinheiro, o quê é um pleonasmo para ela. Mora em Jaçanã, em São Paulo. Foi para o Rio Grande do Sul e pensou em mudar pra lá. Joga sinuca. Acorda tarde no final de semana, tem uma pinta perto do nariz, tem vinte e três anos e seu sobrenome é Yamamoto. No final da noite comeram uma porção de batatas fritas com refrigerante numa multinacional alimentícia. É nissei? Sim, a Mika tem grande tradição para desconhecidos. A mãe veio para cá com três anos, o pai com doze. Tem dois irmãos homens, mais velhos, seu quarto está passando por uma reforma, não entende gírias e é formada em história. Não sairemos mais em restaurantes no bairro Rio Branco. Nuvens é uma palavra que não gosto de ver nos jornais, destoa demais, o desenhista concordou sem dar acesso.