terça-feira, 13 de dezembro de 2005

Alguém pediu para avisá-lo

Hoje morreu meu marido e fiz exatamente o que faço nas tardes de terça e quinta – feira: pegar duas conduções e olhar vitrines no centro. A única diferença é que estou andando mais rápido e amanhã tem enterro, antes não havia previsão de amanhã. Não tenho nem idéia de quem avisar, pois a impressão era de haver só nós dois, sem filhos, sem parentes. Apenas minha irmã, aquela megera, que deixou a cidade e foi viver no interior com o amante. Odeio mulher que trai.
Existe uma loja, no encontro com a Avenida Quatorze de Julho com a Moraes Salles, que é a minha preferida. Grande, barulhenta por dentro, com um cheiro muito bem posto que sai das frestas. O produto mais barato é o valor da compra de mercado do mês. Cada gente bonita! Cada coisa! A loja chama “Aroma Floral” e para uma mulher na base dos cinqüenta, como eu, é um sonho. Já pensou? Comprar um casaco e mostrar pra Mariluci cabeleireira? Ela ia ter um treco.
Acabei de dar risada e lembrei de Mario Ângelo, meu finado. Quando casamos, era forte, cheio de vida. Imaginem vocês, eu não agüentava transar com ele. Ele era Insaciável! Depois, nem com reza braba o pingula dava sinal. Sua coleção de revólveres, sua camisa do Corinthians, seu fusca bege, seu toca-discos com aquelas malditas músicas, o conhaque, os churrascos, as noites acordando pra tomar antiácido. Ai, que saudades de Mario Ângelo.
“Dona Martinha.” Ouvi alguém no meio da multidão. “Dona Martinha!” Destacava tanto o nhá que logo reconheci o amigo do finado. “Oi, Jerônimo.” Companheiro da firma que M.A. se aposentou. Falou um discurso pro morto e foi logo jogando a verdadeira face “Não haverá indenizações.” Eu não tinha dinheiro. Apenas uma merreca. Chorei, anoiteceu e voltei pra casa.
Preparava um ensopado com abobrinha e galinha quando os arruaceiros de sempre começaram a algazarra em frente de casa. Sai e gritei aos moleques que retrucaram “Olha a véia. Precisa de uma pistola pra acalmar.” Odeio esses moleques. Os vizinhos do lado viajaram e quando voltaram a casa tinha sido assaltada. Tenho certeza que foram eles. Tenho certeza.
Acordei e havia um envelope jogado em casa pela minha janela. Quase trezentos reais e um bilhete: “É seu salário semanal inicial. Se quiser aceitar o trabalho, entregue o recado anexo ao sujeito de camisa amarela sempre ás dezoito horas na esquina da Nove de Julho com a Moraes Salles. O código é “Alguém pediu para avisá-lo”. Decore o recado, não vá com ele em mãos. O recado é: Tudo certo, Bufo. Temos certeza que o homem não tem saída. Hoje ás 21:00. Traga a maleta.”
Tanto dinheiro para tão pouco? Se pegassem um moleque na rua pra esse serviço ele não cobraria mais de dez reais. Finalmente, o casaco é meu.
O cruzamento ficava uma rua acima da “Aroma Floral.” Comprava o casaco, descia uma rua, avisava o idiota e ia embora, esperando o pagamento da semana que vem. Encontrei o sujeito “Alguém pediu para avisá-lo” “Conheço você, minha senhora? Com licença.” E saiu. Fiquei pasma e esperei. Passavam pelo menos três pessoas de camisa amarela por minuto. “Alguém pediu para avisá-lo” “Alguém pediu para avisá-lo.” Voltei pra casa ás 22h30min, fiz um chá e fui dormir. E se vierem se vingar?
Acordei com medo. E nos outros dias, também. Quando uma semana se passou, a história se repetiu. “É seu salário semanal. Aceitou o trabalho, entregue o recado anexo ao sujeito de camisa amarela ás dezoito horas na esquina da Avenida Joventino Flores Penteado com a Moraes Salles. O código é “Alguém pediu para avisá-lo”. Decore o recado, não vá com ele em mãos. O recado é: Parabéns, Bufo. O homem não teve saída. Hoje ás 22:00. Traga a maleta.” Exatamente um quarteirão abaixo da semana passada. Trezentos e cinqüenta reais. Como não souberam que não consegui passar o recado? “Alguém pediu para avisá-lo”, “Alguém pediu para avisá-lo”, “Alguém pediu para avisá-lo” e nada. Voltei para casa, fiz um chá e dormi.
Mais duas semanas. Sempre aumentando mais cinqüenta reais, o local de encontro sempre uma quadra abaixo da anterior, eu não conseguindo achar o sujeito de camisa amarela. Hoje recebi o que diziam ser o último trabalho: Avenida Quatorze de Julho com a Moraes Salles, “Aroma Floral.” Fui. A loja preferida, a mesma vitrine, com... um sujeito parado de camisa amarela? “Alguém pediu para avisá-lo” ”A senhora é Marta Medeiros?” “Sim, sou a encarregada pelo trabalho” Pegou em minha mão, me algemou e deu voz de prisão. “O que é isso?” “Vamos até sua casa, Dona Marta.”
Chegaram a casa com cinco viaturas, o delegado de camisa amarela e outros três investigadores. A vizinhança alarmada. “Mostre-me seu quarto.” Quando cheguei ao quarto, havia um cheiro forte. “Que cheiro é esse?” três cadáveres debaixo da cama, um dentro do colchão, todos em estado de putrefação. Meus bilhetes estavam encima da escrivaninha. “Pois é, Sargento Peçanha, a ligação anônima era verdadeira!” Desmaiei.