domingo, 11 de dezembro de 2005

A morte do deputado Cirino

O calor atravessara o vidro. Josefa abriu a janela. O corpo deitado na cama banhou-se de luz. A gorda trocou o velho sem cuidado nenhum, rebolando altos palavrões que a esclerose habitada na matéria do mesmo não dava a devida atenção aos seus significados. Na porta, em pé e atento a tudo, encontrava-se Murilo (Moleque de seus onze anos, regado de sardas e orelhas de abano). Quando a mulher desferiu tapas e golpes nas nádegas de seu vo reclamando da sujeira o garoto arregalou os olhos estupefato. “Que está olhando, pirralhinho? Quer levar umas bofetadas também?”
Cirino era deputado eleito por nove cidadelas, dono de boteco, pai exemplar. Se não fosse o contrato da criada feito pela filha mais velha, os cinco mandatos cumpridos e o sexto com dois terços, talvez agora estivesse servindo porções de torresmo para seus amigos, ao invés disso, sem reação apanha da empregada gorda na frente do neto. Nesse dia várias visitas foram feitas. A noticia havia se espalhado com êxito e o partido ameaçava um luto simbólico. Uma bolsa de sangue na cabeça chamava a atenção das visitas curiosas.
A casa era humilde, pois é claro. O resto era fazenda e gado. Muito capital. Na casa, a empregada, as duas filhas (A mais velha de nome Maria, divorciada por anos e a terceira ainda solteira de nome Maristela) de cinco e o neto, filho de Benedita que morrera em acidente.
No mesmo dia, à tarde, Cirino recebia a visita de Dr. Portugal, colega de infância. Levou livros do exército que liam juntos e alguns boletos bancários. Papeou durante horas na cadeira frente á cama sem reação nenhuma por parte do deputado tirando alguns gazes que se ouviam às vezes. No assunto de banco, no meio dele aliás, milagrosamente o deputado esboçou alguns grunhidos. “Meu deus! Josefa, Maria, Maristela, alguém! O deputado está falando!” Maria não estava na casa, mas as duas outras chamadas, a filha mais velha e a empregada apareceram. Fuzuê se formou até o silencio retornar. O velho abriu a boca devassadamente e ornou com o olhar em direção á Maristela: Sua puta vadia! E morreu gemendo após proferir estas palavras. O silencio permaneceu durante cinco minutos até o Dr. Portugal dizer “Vou chamar o Padre” Era costume do local.
Trancaram o quarto enquanto o padre não vinha. “O que aconteceu?” Murilo perguntava todo o tempo “Seu avo morreu, moleque.” O magrelinho foi até o campinho atrás da casa onde costumava empinar pipa com quem mais gostava nesse mundo. Sentou e chorou bastante. Na casa, pessoas telefonavam e o movimento era intenso. O cadáver não podia ser visto até o Padre chegar, o quarto continuava trancado. Duas horas e meia depois o padre chegou, abriram o quarto e a surpresa: o corpo sumiu.
O padre não acreditou e garantiu que uma das duas havia escondido o corpo sobre motivo desconhecido. Motivos? Não havia. As duas? Desmentiam. E agora? Quem passou por aqui? Alguém? Tinham a chave? Porque diabos???
O menino chegou logo depois todo vermelho e chorando muito. Os olhos cresceram para cima do garoto. “Estava o tempo todo no campinho.” Avisaram a cidade. Piadinhas e preocupação.
Murilo foi o mais afetado emocionalmente pelo roubo do cadáver. Não conseguia achar uma explicação em sua mente infantil. Tentou pensar e concluiu, cheio de raiva, que precisava pensar mais. Na casa apenas Josefa permanecia, sendo que Maristela havia saído e Maria ainda não havia chegado.
Murilo corria pela casa, bateu a cabeça duas ou três vezes de grito contínuo e choro extasiado. A gorda preparava o almoço numa bacia de água morna e rarefeita enquanto movimentava o quadril em tom de banha. “Moleque, não me cutuque. Continue seguindo a parede” e o próprio batia as caras sem compaixão. Andou até a cozinha tranqüilamente após os espasmos, pegou uma faca de próprio uso no descamar o peixe e ameaçou-a apontando com rosto de ódio. Ela apenas olhou:
- A vagabunda morta da sua mãe está vendo isso.
- Vou te matar.
- Moleque, guarda a faca vai, guarda a faca.
- Vou te matar.
- Criança filha da puta.

Enquanto o moleque tombava devido à correria, a gorda espreitava a panela. Pegou-a lentamente e desferiu um golpe na cabeça de Murilo que esguerniçou no chão engordurado. A impressão era que o mesmo caiu lentamente, mas na verdade caiu rápido. No chão, o sangue em pequena porção escorria de sua cabeça. Não chorava, nem gritava, muito menos desmaiara, apenas olhava para o teto fixamente.
A gorda arrastou-o ainda respirando até perto da dispensa (Um rastro caramujo de sangue). Ajoelhou sobre o corpo produzindo a imobilização e jogou sal, limão, vinagre e pimenta no ferimento enquanto o mesmo se debatia intensamente. Espremeu varias cebolas sobre o rosto expresso em dor e após mandar vários bofetões saiu direcionando-se até o banheiro.
Murilo levantou bem divagar, tateou a faca, pegou-a e apoiando-se foi até o banheiro. O pouco que conseguia abrir os olhos foi o suficiente para observar a posição da empregada que de porta aberta estava sentada na privada com as calças arriadas sem perceber a presença do palito de ódio ao lado da porta, ela ria intensamente. Girou, gritou e cravou a peixeira na testa dela ficando apenas com a ponta introduzida, fixa e horizontal. A gorda levantou em seguida foi tropeçando nas vestes de baixo até cair de cara no chão fazendo a faca atravessar toda a cabeça no engasgo do grito final.
Murilo ficou observando a cena e enojou com o cheiro forte de sangue, instantaneamente vomitando sobre o corpo de bruços logo em seguida.
Ouviu a porta. Era provavelmente a tia Maria. Trancou a porta do banheiro. Maria entrou na cozinha olhou as coisas pela metade e não percebeu as gotas de sangue no chão. Foi até o quarto da empregada, o seu quarto, até o quarto do Deputado estranhando estar trancado, o de Maristela, de Murilo. Tentou abrir a porta do banheiro. Bateu.
- Murilo?
- Sim.
- Cadê Josefa?
- Não sei.
- Como não sei?
- Foi na vendinha.
- ...
- Que cheiro é esse?
- ...
- Murilo?

Olhou para baixo e gritou. Seu sapato estava encharcado de sangue que transbordava por baixo da porta. Murilo abriu a porta e saiu correndo. Foi até o campinho procurar se livrar. Ouvia os afoazes vindos da casa. Logo Maristela chegaria e haveria padre também. Era costume do local. Se escondeu atrás da árvore, exatamente onde sua tia o esperava. Segurou o garoto pela orelha enorme branca, depois vermelhou. Berrava na orelha do Menino que estava ensopado de sangue de Josefa e não chorava, nem tinha reação. Sua tia pegou a chave do quarto de Cirino no bolso da empregada e surpreendeu com a falta do corpo ostentando uma cura aparente e passeio por aí. Ligou para a polícia e para o Padre. Murilo tentou se esconder embaixo da cama, mas percebeu um buraco de um metro de ponta a outra e escorregou sobre. Subiu um porão de repente.
Machucou-se um pouco e bateu as cinzas, cinzas? Estranhou e observou que as paredes possuíam entradas onde esqueletos e pedaços de corpo humano agora se encontravam em vidros mesclados a um cheiro forte de formol. Não enojou, pois nada mais o enojaria, jurou para si mesmo.
Seguiu reto pois o ambiente não era escuro devido a lâmpadas colocadas no chão. Encontrou um gordo medindo um corpo estirado no chão imundo. Era seu vô. O gordo olhou para Murilo, aquele moleque sardento, e nenhuma reação esboçaram. Vestia o corpo de Cirino com uma roupa de odalisca rosa lebre e batia pó-de-arroz com um algodão na face após a breve medição. Murilo olhava fixo. Foi até as estantes, pegou um vidro com olhos e língua em conserva atirando-os no chão em direção ao gordo. O gordo era caolho, pegou um dos olhos e chupou. Delicadamente pois dentro da boca do Deputado, fechando-a com paciência e delicadeza em seguida. Beijou a face do morto e cuspiu na mão, fez o sinal da cruz virou ao menino e disse: pois não?