sábado, 10 de dezembro de 2005

A velha que costurou minhas orelhas

Acordei no hospital. Nem vi a cirurgia, mas sei que foi um sucesso. Começou neste momento um péssimo dia, sendo que o homem branco que me sedava não percebia minha origem, ou ao menos não se mostrava interessado nela. A enfermeira de rugas me atendeu dizendo: “Adalberto Clodoaldo Ferreira”, era meu nome. Eu então comuniquei o que ocorrera de forma, como sempre, estranha: “Meu pé nunca quebrou por tal maneira. Não havia feito isso antes, pois não fazia falta. Eu pensei que seria normal”, disse isso muito devagar, pois sou mineiro e filho de mãe preta, enquanto a mulher esquisita sorria. Continuou a me ouvir com o mesmo sorriso fraco, só que dessa vez pondo negócios em meu braço que traziam outras recordações e me fizeram falar demais, motivo esse que fez a enfermeira sair dando um pequeno “tchau”, voltando depois a passos rápidos com uma ficha e perguntando “qual é sua idade?” disse eu: sessenta e oito...
Mas apesar disso, tudo estava muito bem. Nada em mim me incomodava a não ser este maldito barulho de carros e mulheres-gralha da cidade de São Paulo. Quer saber, a janela é o que mais me incomoda neste quarto. Suportei médico com cara de nojo a vida inteira, mas essa janela... sempre foi a maior merda. Eita janela maldita!
“O senhor quer bolachas? Chá?” Por favor, um conhaque. Dá vontade. Vontade de falar sem medo, mas não falo, pois já decorei a resposta, e digo sim, como sempre...
Sempre e mais nada. Gostosa bolacha. O chá é horrível, mas serve de consolo. Meu filho não me fez visitas talvez por medo de quebrar esse costume. Quero acreditar que sim, na verdade acho que eu preciso acreditar...
Não vejo a hora de receber alta. Preciso de remédios - aqueles remédios que gosto tanto – e de um trago. Cigarro. Preciso de um cigarro. A gente precisa de tanta coisa e não faz questão nenhuma quando sobra...
“Seu Adalberto, seu raios-X me trouxe péssimas noticias. Vai ficar internado até sábado e precisa receber mais sangue, pois a hemorragia foi intensa demais”, ouvi dez minutos antes de apagar.
Acordei muitas horas depois, essa era a impressão ao menos, com muita dor na perna direita e no peito. Chamei alguém para me ajudar, gritei durante um bom tempo, mas ninguém apareceu e lembrei-me que estava em um hospital.
Janela... essa maldita janela... pior que a dor...
Hoje puxei um papo com a cama do lado que acabou de chegar onde repousa uma velha senhora que embora inconformada com minha aparência não tinha pessoa melhor para lhe ouvir. Quando começou com papo de igreja logo apareci com a frase “O anestesista de ontem que me cutucou era um gatinho, quem me dera eu levar uma agulhada dele.”
É que nas noites de São Paulo sou um rei, conhecido das meninas e valorizado pelos palpites. Aqui no hospital, quase 80% de minha vida, sou um traveco velho.
“Adalberto Ferreira?” Sou eu. “O senhor poderia preencher esta ficha? Vai dar parte do seu cliente?” Não. Sempre respondo seco a essa pergunta, me faz sentir melhor e superado. É que eu quebrei o pé durante a trepada, ao cair da mesinha, portanto o rapaz não tem culpa. “Você tem algum parente?” Somente amigas. “Quer que eu ligue para alguma?” Elas não moram em lugar fixo. “Sua artrose dificultou as coisas. Mas se tudo correr bem, sábado receberá alta.” Qual é seu nome, enfermeira? Ela me disse “Eleanor”.
Se não fosse esse maldito cheiro, eu não enjoava. “Nem de você querida”, falei. A crente não entendeu, cruzou os braços sobre a barriga emersa em pelancas. Aliás, como balançava a barriga dela e eu aqui urinando na sonda. Tomara apareça alguém como o anestesista. O tempo não espera trégua sem fome, me dizia Salete.
“Adalberto, você tem uma visita” Não tenho nada, algum engano talvez, como poderia? “Oi.” Imaginava. A velha Joane. Velha e rival, pois era a rainha do carnaval. Puta um tempo, traveco em outra, assaltante em momentos, mas traficante em vários. “Bem feito. Agora eu mando nas meninas da avenida. Seu ponto é meu” “Ainda não estou morta, vagabunda.” “Ainda não, mais eu te mato.” Cuspiu em minha cara ainda, a safada. Saiu rebolando do quarto pra mais desespero da cama ao lado. A crente me olhava com ódio puro e sangue nos lábios.
Chamei Eleanor e disse que estava passando mal, pois precisava de um antidepressivo e uma soda, infelizmente sem vodka. Disse que ia trazer, mas não trouxe.
Janela. Essa maldita janela. Pior que a dor.
Apareceu um instante depois o médico por mim responsável perguntando a necessidade real do antidepressivo, perguntou de receita e tudo o mais. Abri-me, não literalmente infelizmente, e acabei chorando. Ele disse que fazia treze anos a profissão que escolhera, eu disse que fazia cinqüenta a minha. O ventilador tomou o lugar da conversa durante um tempo. Coçou a barba e eu também cocei a minha. “Vou lhe arrumar o remédio, mas fica entre nós.” Obrigado.
Embora sedado a dor continuava. Maldita dor. Chega de chorar, sei que depois de amanhã é o mesmo dia de hoje, e depois de amanha também, e depois... todo ponto parece cú de gato que alegra a gente, bonito quadro, de frente fica pior quando eu chorava leve. Agora mesmo sinto um pesado sono que me abate.
Acordei de mau humor por terem me acordado já nunca eu imaginaria que... Seu Adalberto, diz Eleanor... Seu Adalberto, seu filho. Entrou. Fazia quinze anos que eu não o via e ali estava ela encostado-se à porta, cabisbaixo e tomando a panca de prestativo. Desatei a chorar como uma puta velha, sendo o que sou.
- Oi pai. Como vai?
Oi pai, como vai? Oi pai, como vai? Oi pai, como vai? Oi pai! como vai? Quinze anos e ele me disse apenas isso, quinze malditos anos e ele me disse apenas isso, quinze anos e me disse apenas isso... fiquei imóvel e nada disse durante quinze minutos não respondendo a nenhuma pergunta. Ele me olhou e saiu. Como hoje era sexta e um dia fazia muita diferença, o anestesista gostoso entrou na seqüência, deu alta e conversamos muito até que eu consegui ambos chorar.
Deixei minha cama de muletas, agradeci a megera do lado que não respondeu, subi as escadas muito devagar “aonde vai?” Apreciar a paisagem. Lancei-me do alto do prédio do Hospital Santa Helena para o encontro com o carro vermelho que meu filho acabara de dar a partida. Foi sangue néon pra tudo lado, louca!