terça-feira, 14 de julho de 2009

Márcia

Márcia tinha cabelos lisos, pretos, na altura dos ombros e escorridos como óleo frio que rudavam nos dedos quando eu tentava fazer um carinho no couro. O couro do sofá que estávamos deitados parecia absorver todo o nosso suor de poucos pudores e de farta preguiça. O sol batia tão quente na janela do meio datarde que tentávamos procurar um lugar em comum no sofá que não atesse o sol generoso. Isso nos deixava mais próximos. Seu pai era frânces, sua mãe indonesa, e haviam tantas gerações em suas costas que tantas histórias não se igualariam ás histórias refletidas em seus olhos. Ela nunca me respondeu, permanecia calada, passiva e precisa nos gestos quando se levantava do sofá para negociar um café com um dos índividuos que morava comigo na cozinha, voltava rindo de seu moicano. A liberdade da tribo que falava francês e lutava como ninguém. Discursava então sobre como os índios do norte tanto lutaram e os do sul sempre foram cabisbaixos aos caprichos espanhóis e portugueses. Márcia tinha uma verruga no canto da boca, do lado esquerdo, com alguns pêlos. Enquanto eu quase pegava no sono observava ela cuspindo, ou melhor, passando baba nos dedos para enrolar os três fios de pêlo que despontavam dessa verruga. Parecia pensar sobre o passado, ou sobre previsões do futuro. Já tinhamos conversado que não havia futuro para ambos, que estávamos naqueles viveres por pura gozação momentânia e acho que aquilo no fundo aborrecia a ambos. O fato de sabermos que não demoraria muito não ficaríamos mais juntos. Quando ela se colocava de pé a minha vontade era de cair de joelhos e tentar entender porque o fato de estar tão preso á ela me feria tanto. Também sempre a dizia que eu tinha sorte e muita afeição com nomes terminados com uma consoante seguida da vogal a, e que nunca me dava bem com pessoas cujo nome terminavam com uma consoante isolada, porém essa era uma regra com mulheres. Ela sorria e dizia que no caso dela eram duas vogais no final, eu cerrava os lábios a fim de ser compreendido. Seria ela uma exceção? Não, ambos sabíamos que nossa história não tinha relevância e isso nos maltratava. Gostava dela, e ela gostava de mim, nunca dissemos nada disso para o outro, as pequenas cochiladas á tarde bastavam e dentro dessa certeza de uma pseudo-relação sem futuro, e que essa sina não poderia ser mudada continuávamos até o dia em que ambos nos saturaríamos e esse dia nunca chegava. Recordo-me de que ás vezes eu a olhava fazendo compras e a julgava muito feia, um corpo pequeno, meio gordo, um jeito de criança. Engraçado os diferentes olhares que damos á alguém intimo quando sozinhos, olhando a pessoa de longe. Imaginando estarmos com essa pessoa. Costumava flagrar, sem que a mesma percebesse, quando me olhava também desse modo particular e cíclico em meus momentos de ociosidade, sempre generosos, em frente ao computador. A julgava feia nesses meus momentos de análise, porém nos momentos em que ela estava deitada, á meia luz, enquanto eu passava meus dedos em seus cabelos ensebados, olhando-a nos olhos, julgava se tratar de uma das belezas mais notáveis desse mundo. Márcia, aonde anda, aonde bebe, com quem janta nesse exato momento? Vai pra ti uma partícula do meu pensamento, o estalo do isqueiro no meu cigarro, um clarão de pequena saudade fingida, essas palavras despojadas de interesses.