domingo, 6 de abril de 2008

Fábula N.3

Havia um grande dentre o meio social mais alto daquela cidadela (o mais alto tornar-se-ia o mais baixo dentre outras) e seu nome era Alfredo. Transava com a mulher do seu vizinho enquanto esse passava horas a fio a rabiscar um tratado sobre solo arenoso em geopolítica, no qual acreditava que o tornaria famoso entre o meio acadêmico. Escrevia no sótão e ás vezes ouvia barulhos embaixo e descia sempre encontrando a mulher no banho e a janela aberta. Ficava realmente possesso, transtornado, e fechava a janela dizendo que um dia ela ficaria gripada e quando isso acontecesse, ele não iria gastar em remédios, pois teria avisado. Alfredo morreu. O nome do pretensioso escritor de tratados era Mário Meirelles. Tinha o rosto quase todo marcado por rugas e espinhas, alguns cabelos grisalhos, nariz de descendência negra, mas era branco. Barriga de quem tem mais de quarenta. Como único parente, possuía um tio por parte de pai de nome Amorim Coelho Galembeck, docente do instituto de química que desenvolveu o Biphor, pigmento branco que ainda hoje promete revolucionar o mercado de tintas. Todos da família Galembeck eram ambiciosos mesmo Márcio não possuindo o sobrenome do pai, apenas o da mãe, Meirelles. Mesmo assim, repetia constantemente no espelho que era um Galembeck e até usava o sobrenome. Não tinha sido reconhecido quando nascera bastardo sendo usado e registrado em aptidão apenas pela mãe. Assumido depois de velho quis entrar na justiça, colocar o sobrenome nos papéis, mas sua mãe o persuadia a mudar sempre de idéia. Hoje se arrepende, mas ainda usa o sobrenome Galembeck. Talvez tenha ficado assim pelo sangue irlandês e a mentalidade dos tempos medievais, preservado no sangue, da nobreza dos sobrenomes. Os falecimentos, assim como os casamentos e as bruxas, são uma constante nas fábulas. Amorim Coelho Galembeck era alto e magro, e bateu as botas tendo nas mãos entrelaçadas um volume da “Enciclopédia de espécies de répteis Ronemburg”, os olhos esbugalhados centravam-se nas “Stars fixes” do teto. Boca entreaberta, assustado, pés azuis e rosto amarelado fosco, como ele descrevera anos antes em sua “Da Basiléia á associação de Mortuários” uma obra de costumes e previsões que não obtivera muito sucesso. Mário Meirelles não sentiu muito pelo tio em si, mas pela influência perdida e pelo pranto da mulher de semanas que parecia ter previsto o falecimento do tio. Comprou então um caixão em forma de livro, onde grafava em itálico “Da Basiléia á associação de Mortuários” e na lápide: “Amorim Coelho Galembeck, viveu entre o nascer e morreu genialmente”. Oito pessoas no funeral, quatro contratados pela agência funerária e três aspirantes longínquos ao testamento, já que era doutor rico, o criador do colírio de insulina dentre tantas outras coisas que a humanidade não pode viver sem. Meirelles falou com o reitor da universidade nem dos horários marcados com antecedência pela atendente. Esperou numa sala rosa com quadro de familiares do supremo. Chegada hora, anunciou que desejava o luto oficial da universidade. O Reitor aceitou com a condição de maiores “royates”, mas como esses foram passados para a amante do tio, Mário nada pôde fazer, no resultado apenas uma nota no jornal da instituição foi conseguida, na página que continha os créditos da edição, com o nome errado, por descuido do estagiário redator. Saiu como Serafim Lebre Guttemberg. Mas tirando pequenos detalhes, Mário ficou satisfeitpo. Ao prazo de três meses tudo voltara ao normasl, inclusive sua mulher que havia se conformado, mas voltava ao horrível costume do banho com a janela aberta. A cadeira vazia deixada por Amorim Coelho Galembeck fora ocupada por uma mulher experiente, de setenta anos, porém morrera dois dias depois de ocupá-la. Pensaram no sobrinho do falecido professor. Não era da área, mas tinha passagens pelo mundo suficientes e havia lido “Cahiers pour une morale” e compreendido tudo. Em sua primeira aula sobre “química do solo” fez-se um excêntrico como havia ensaiado sozinho, em seu quarto á noite, apontando para o teto e decorando os melhores trechos do improviso. Palavras de efeito e frases de lares de romances franceses, dos quais lia as traduções. Uma aluna, Fernanda, rebolava histérica no dia do exame. Começou a idéia de uma ponte para uma aventura com um ser velho, com uma vontade á menos, hostil de se impor e desvencilhar. Na verdade sabia mais do que ninguém que as diferenças se divergem na cama. O professor, longe de ser nosso herói fabulado, manteve sua postura acadêmica, mas se masturbava depois em casa, diante do espelho. “Galembeck, Galembeck, Galembeck”, repetia em conclusão, compassado com a mão direita e no grito do orgasmo final, calava-se no meio da palavra tomado por uma repentina razão. E saciando-se trazia o resultado espesso até a borda do ralo com o pé direito, com muita calma, observando a prole não fecunda descer pelo ralo, literalmente. Pela primeira vez contendo fatos antes apagados por desconhecido motivo, como era da natureza, pensou em ter filhos. Sim. E por que não? Teria filhos e chamá-los-ia Galembeck. Todos. Até os que fossem meninas. Riu. Bem, teria que comunicar á noite a decisão para a mulher, que talvez até desejasse, mas nunca havia tocado no assunto. Positivamente, tinha medo. O plano era de extrema simplicidade, esforço nenhum nisso, apenas movimentos peristálticos. De cintura. E se fosse necessário mandaria a mulher plantar bananeira para uma melhor concepção. Acabaria de praticar o coito interrompido. Ele seria severamente substituído por verdades que fossem condizentes com a nova retórica pessoal. Após ter meses de tentativas, conseguiu. Usando palavras simples e diretas pra chegar ao coitado leitor, digamos que antes era ela uma postura casual, um desejo vindo de sempre continuar buscando outra coisa. O moleque chamou Joaquim. Joaquim Amorim Galembeck. Não possuía nenhum sobrenome vindo dos pais e era uma alusão direta ao tio. Seria uma pessoa genial, de cair queixo dos homens que fitam personalidades constantes; um cara de se gritar por aí. Agora está com três anos e sua personalidade é ofuscada no aprendizado. Seu pai já escolheu a ciência: Paleontologia. Será imortal em tal página de conhecimento da história. Entrou direto na universidade da qual hoje é docente. Expressamente proibido, mas possível de qualquer ocasião. Uma vestimenta dele, essas de memórias, de paratologias vãs, estupidamente certeiras. Feita de tabela, completando catorze anos e tantos meses, voltando ao passado, nos anais os pais triturava dinheiros a contratar melhores particulares professores com o fim de bem ficar com os homens da parte de lá, social. Figurava entre os melhores coeficientes de rendimentos já vistos. Fez questão de mestrar. Reproduzir mestres passados. O pai morreu chorando e fazendo Joaquim prometer fazer mais filhos, falaria do tio-avô, do avô e preservando os nomes até a eternidade. Ao morrer, Joaquim guardou o chapéu.