quinta-feira, 29 de maio de 2008

Emergindo tardio e inesperado da massa é descoberto mais um paranoial.

A testa está tão retorcida e encharcada que os olhos ficaram totalmente vermelhos, irritados pelo banho constante e inevitável provindo do escorrimento da transpiração facial incontrolável e abundante. Suando frio, pálido e sentindo-se tonto, olhando há quase meia hora fixamente para o caderno que está com quase três linhas rabiscadas á lápis numa ortografia ilegível para a grande maioria, ainda não fez um só movimento durante essa meia hora, costas curvadas, um fino e transparente fio de baba escorre de sua boca semi-aberta. São duas horas da tarde e o sol bate cheio, generoso, em sua janela fechada. Talvez a única janela fechada numa extensão de quinze quilômetros. Uma mosca-varejeira de um verde metálico pousa no caderno. Seus olhos saem da parede bem divagar até a fitar. De repente, num espasmo, ele grunhe mordendo a língua e dá um tapa barulhento nela. Não sabe se conseguiu acertar o golpe ou se o inseto esquivou-se. Na verdade não importa. Importa que o barulho acabou. Pega o lápis, risca, rabisca, risca novamente e então pausa olhando de novo a parede. Os ciclos repetem com variações pequenas, singelas até que atingi a madrugada. No meio da cidade aberta, cinza e sonolenta, é revelado mais um paranoial.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Joel Boa-Morte

Deitado na cama suja em um hotel de terceira com os pulsos cortados velando o teto, esparramado e frio em sua existência, contempla o som silencioso das moscas que pousam na lâmpada, olhando esta em sua parcialidade, mas como se não estivesse, com os olhos fixos e secos, olha sem piscar, seu nome é Joel Boa-morte, mas tam’bém foi conhecido como Félix Salgado nos momentos em que se foi joconicamente concluir sarabaques por todos os cantos da alta sociedade. Tenta o suicídio e espera a morte, mal percebe os cortes superficiais nos pulsos, mas sangra bem e talvez pela sensação do sangue grosso escorrendo sobre a carne e a saliva que escorre em demasia pelos dois cantos de sua boca, acredita cegamente que vai morrer. É fim de tarde, o sol humildemente se retira, sem pressa nenhuma, como quem tem vergonha, e as recordações aparecem como um caleidoscópio porco. Joel procura organizá-las buscando um sentido menos banal, um ponto perpendicular, uma hélice transversa qualquer; organizar em ordem cronológica como chegou a tal situação. Sabe-se que foi viajante de comércio, debatendo a si mesmo a posição que se pusera, pois ao vender se sentia num duelo de imbecis mirando o fedor de suas mentes falsamente distraídas em torno da situação subtendida. Situação composta da mesma matéria de que é feita a luz dos museus. Abandonou, obviamente, somando menos de dois anos servidos á companhia Steinghhall, multinacional, e voltou a pedir dinheiro para a avó, fingido estudos de direito numa universidade privada da região. Notícia que foi por essa muito bem recebida, pois dela, a avó, Maria Helena, ele herdara a ambição de buscar uma riqueza descomunal, que quando menino lembrava haver na família, mas que acabara com seu avô, trocando três chácaras, duas casas, uma delas um casarão na capital, alguns carros, muito gado, por bebida e bucetas. Morreu se presenteando com uma bala na cara e ainda deixou algumas dívidas como herança para os filhos e mulher. Seu neto, Joel, cresceu com a avó que via nele, seu neto único, a oportunidade perfeita para o resgate da condição de pessoas endinheiradas. Após a comunicação sobre o falso curso, Joel pensava que vultos lhe observam, até agora a impressão permanece, pois fora do hotel, sim, lá fora, apontam para ele, gritam seu nome nas ruas, julgam-no, e aos poucos, o infeliz percebe de onde surgiu a decaída. Era dezembro e comia mal, e saia pouco, e não tinha amigos; se queixava. Quem eu estou querendo enganar? Joel sou eu, ora. E deixemos de lado as descrições pomposas que me deitam à vista ao dicionário e me fazem parar a cada minuto em uma frase. Certo que não morri, esqueçam a cena ridícula da qual passei na pousada, achando que esperava a morte. Há outras coisas mais ridículas de que quero falar ao papel, e á você, leitor imaginário, e a pressa é muita, pois a vontade é pouca.
Morava em um apartamento num prédio de três andares. Segundo andar. Quarto dezesseis. Geladeira, quase sempre vazia, televisão, cama de solteiro, duas panelas, quatro pares de garfos e facas, uma colher, um Fiat 98 de vovó, de molho, um fogão caindo aos pedaços, uma escrivaninha, um colchão na sala servindo como sofá, um aparelho de som que toca apenas fitas e pega rádio. Essas são minhas posses, amigo, foram gentilmente cedidas pela minha avó. Na verdade foram mais, mas a venda foi necessária pra suprir alguns luxos dos quais me dou de vez em quando. Essas vezes em quando se transfiguraram no episódio do qual narrarei aqui: minha existência como Félix Salgado e seu desarrolho em minha frustrada e ridícula tentativa de suicídio naquele hotel daquela noite.
Foram á exatos três anos atrás, eu tinha alguns amigos ainda e em especial uma, aliás, minha melhor amiga, da qual tentei algumas vezes buscar sua afeição mais sexual e que custou quase a amizade. Seu nome era Marcela. Transcreverei de minha memória, a qual não é de muita confiança, o diálogo que tivemos naquela tarde de abril em um café no centro da cidade:
- Quanto custa esse café? – Ela me perguntou.
- Dois reais. Por quê?
- Imagina se a gente deixa de tomá-lo, amanhã estaríamos com dois reais a mais.
Achei muito estranho o quê ela me disse, mas não quis ir mais adiante naquela conversa, pois embora o raciocínio fosse lógico e simples, uma demonstração de mesquinharia á primeira vista, me pegou de tal maneira que passei a refletir sobre aquilo e não saí à noite, como saio todo dia, e fiquei a fumar e pensar, em casa que dois reais, oras, dois míseros reais e em um mês eu teria sessenta só do café. Minha avó era pobre, mas fazia de tudo para me enviar dinheiro, de tudo mesmo, se endividava e tudo mais, afinal, seu filho estava cursando uma faculdade. Caro leitor, nesse instante eu acho que já percebestes porque iniciei estas linhas em terceira pessoa, me sentiria mais á vontade, porém não me julgue, por favor, não julgue meus atos. Eles me levaram ao hotel, não se esqueça disso e além do mais, vá para o inferno com seus apontamentos.
Elaborei uma estratégia simples. Nada complexa, tão simples como a reflexão de minha amiga Marcela. Maria Helena me mandava seiscentos reais por mês, quando eu gastava tudo, pedia mais e ela dava um jeito de segurar meus caprichos. Comecei planejando a semana, apenas gastando em comida barata e guardando o restante. No sábado, tinha noventa reais. Liguei para Marcela e a convidei para sair. Fomos a um restaurante, depois para um bar de classe média no centro e voltamos pra casa sem um tostão. Paguei tudo. Mas foi tudo muito vazio, tudo muito normal, sem cor, claro, eu não senti que era o suficiente, então peguei o restante do dinheiro do mês e comprei pão de forma, ovos, manteiga, queijo, arroz e cigarros em pacotes suficientes para um mês, porquê o restante ia gastar em um só escolhido. O carro não sairia da garagem coletiva até o dia certo, por nada. Começo difícil, caro leitor, não pense que dinheiro é fácil de segurar. Estratégia. Coloquei numa conta no banco, quebrei o cartão e retiraria valores de lá somente no caixa. No dialogo que se seguiu com minha amiga inspiradora em sentidos vários, senti um clima propicio é mascarações por parte de surpresas em explosões faciais, ora ria muito, ora calava-se pensativa. Disse-me, tomada por concluído: “se der certo, por favor, chame-me um dia que lhe farei companhia. Seria uma saída na noite da qual nunca teria tido antes com nenhum outro homem na minha vida, e por isso mesmo de uma especialidade memorável sem igual”. Confesso que aquilo me excitou ainda mais para continuar tentando, já tinha pensado umas sete vezes em ir ao banco, desesperado por meus pequenos caprichos, mas aquilo foi o toque divino. “Ela será sua! Somente continue” um possível Deus urrava em meus ouvidos, minha parte Deus, não aquele de Abraão e Malaquias, mas um deus, forçando o santifico pela cor abrumada do sexo, o quê dava certo e talvez pensem agora, pausando os olhos daqui, os pastores leitores que ajude esse toque pra pegar ovelha rebelde, mas mesmo na certeza, estava ainda no terceiro dia e havia ainda vinte e oito, com minha avó mandando dinheiro e eu não o pegando e no quinto dia recebi uma ligação que era esperada por causa das noites que me pegava pensando, querendo vencer a mim mesmo, tentando cercar o plano, o telefonema perguntava-me se ia tudo bem, pois ela notou que eu não havia retirado nada do primeiro depósito, velha, mas não boba, sabia que eu nunca deixei passar mais de dois dias, qual respondi que havia recebido um dinheiro por um favor feito á um amigo na faculdade, mas que mesmo assim continuasse mandando conforme o combinado, pois pretendia uma viagem no último final de semana do mês, e embora toasse com certa estranheza aquelas palavras, pois minha avó sabia o ódio e o excitamento de repulsa que eu tinha por viagens, a velha achou aquilo bom, não disse, mas pude sentir no tom passivo, dentro de seus gostos, pois lha soava pomposo o suficiente para recordar os tempos passados, tentar tirar um caldo da fruta despedaçada, mesmo que como platéia.
As quatro semanas que se passaram foram uma experiência única e de certo modo até instigante, me divertiu na falsa pobreza, na quebra extremista da rotina, quando ser pobre é uma opção, como os sovinas e excêntricos, não há tristeza nem pena que atinja, e ainda mais, além disso, peguei gosto pelo jogo e assim sendo não gastei ao menos um centavo dentro do período, mantendo os últimos vinte e cinco na carteira como um símbolo sacro, almejando vitórias, olhando-o sorrindo, como um moleque já orgulhoso da traquinagem, antes mesma de fazê-la, e tudo realmente passou conforme planejado, afetuosamente para com o dia, por certo, com exceção de um único, o décimo quarto, por exato, onde na eminente infelicidade encontrei um amigo enquanto eu olhava distraidamente o conteúdo dependurado na lateral esquerda de uma banca de jornal no centro, amigo este que eu devia uma quantia pequena, porém considerável dada a situação de ambos, e que se não houvesse tempo em vê-lo esqueceria da divida tranqüilamente, mas aproximou-se de mim e não me falava como amigo depois de uma abordagem fria evidente e sim como um credor direcionando-se ao endividado, já nos passos em direção, ainda mais forte na fala, saboreando o desespero deste, sentindo-se finalmente superior a alguém em seu intimo de não necessária, nem relevante, inconsciência, e no que tentei negociar e quanto mais negociava, mais ele crescia em seu ego, no sempre confortável abraço da posição de centro-dirigente de uma determinada situação, e como são raros os momentos assim para as pessoas cotidianas e de rosto anônimo, como ele, eu e os milhares, o sujeito aproveitava-se ao máximo, querendo prolongar o tempo ao máximo possível, num êxtase tão saboreado que nem se mostrava presente, sim, e o dinheiro nessa altura já virara segundo plano, visivelmente o infeliz nem se importava mais se o receberia, e de tanto não e de tanto sim acabei falando que pagaria no fim do mês sem falta, com ar de promessa séria, mas pediu-me uma garantia como antevisto por mim antes mesmo do meliante começar a tentativa de um diálogo de acordos que não estragasse meu plano até então sem falhas, mas no desfecho, bem, considerei-o uma segunda façanha, a inicial e estrategicamente dorsal já a tinha dado por concluída bem antes do prazo, tamanho era meu empenho, mas senti que não ganhei depois, mais tarde, em casa, pois poucos dão um relógio de dois altos valores, sendo um deles retornável e o outro não, por uma idéia ainda não concluída, e ainda mais: vendendo-o pagaria a dívida e contribuiria ainda para o bolo acumulado de depósitos. Mas depois. Depois era depois até naquela hora, o negócio era ali mesmo e ainda soma-se esta condição fatídica, percebida postumamente: dentro de meu orgulho não se passou em nenhum momento, a não ser depois, a idéia de simplesmente sair andando, pois era amigo morto, conforme a sua própria vontade explicitada e judicialmente não tínhamos nada registrado, e nenhuma testemunha. Esqueça caro amigo, são chateações passadas que agora te aborreço, não essenciais, percebi de sopetão estar prendendo-o por um simples capricho pessoal, de quem se acha num contexto favorável o dono da palavra, que acaba de tecer uma crítica quando da posição superior no vocábulo dialético e a comete, contradizendo-se, que não leva em conta que pode ter você abandonado a leitura dessas palavras reunidas aqui há muito tempo, por tédio ou decepção, e as usa como um velho reclamão que só é assim porque não tem muito quem o ouça e o que mais queremos ao ser ouvidos na verdade é desabafar, reparem nos grandes diálogos, mesmo de terceiros, grupos, ou até na escola de Sócrates. Uma hora surge esse banal e ridículo fantasma camuflado, o grito no escuro que nunca espera resposta, pois tem consciência própria, alguém a solta, emudecida ou não, e fazemo-los com pausa, mas falta-nos essa quando existem raras orelhas disponíveis, por motivo talvez da certa antevisão do possível ouvinte. Fiz de novo. Desculpe. Já tá mais do que na hora de ir pro desfecho do primeiro mês que não calculei trajetos nem lugares, este azucrinante narrador aqui, nem ao menos idealizei programas, parte dele, ou mesmo uma idéia. Isso foi o mais difícil. Acredite. Incrivelmente difícil. Ansiedade natural da conclusão, da parte boa, a idéia era decidir somente no dia, quando pisasse pra fora de casa. A única coisa fechada era que Marcela iria junto comigo, além do dia e da hora, pois mulher não se chama de repente, porque se ela topar prepare a cadeira com tranqüilidade, perdido nesses que então decidi que na próxima, já estava certo que haveria uma próxima, nem ao menos o dia eu saberia, bastava querer e ter juntado bem mais que o considerado suficiente, e de repente, zás, ia pra rua e se Marcela desejasse ir junto, que já estivesse pronta e viesse ao encontro, pois a idéia de sair com ela já não me seduzia como antes, estava agora indiferente, mas excitado com a possível novidade, e preocupado com a próxima motivação que garantiria a segunda feita, e um pouco arrependido do convite também, estava com dinheiro demais, não ficaria sem companhia na noite, mas primeiro dia tudo bem. Estava pensando no segundo sem nem experimentar o primeiro, que criançola, mas nada mais além destas coisas era previsto, e peguei-a, fui pegá-la, na verdade, ás sete da noite, pausando a buzina, fazendo ritmos, brincando com certa vontade de moleque que foi autorizado á voltar novamente ao campinho pro futebol depois da janta. Mesmo sabendo dos dez minutos obrigatórios para as aparências, e sim, existem sim as verdades absolutas do sexo, desculpem-me joanas d´arc, taradelas por boceta, me peguem na rua, agora ela desceu, vi a luz do seu quarto apagando, sinto as escadas tintilando, trinta segundos no máximo, espere, já apareceu. Veio com uma saia preta que refletia a luz na vertical de um jeito que até retomei a idéia de come-la. “Vamos?” – Ela disse, fechando o portão - “Não, vim avisar que não vamos mais”.Pausa. “Brincadeira, entra aí”.Começamos rodeando a cidade, não no sentido literal, mas no adverso, e nenhum lugar parecia caro o bastante. Depois de uma hora e meia e uma abastecida num posto, paramos num famoso restaurante da cidade, não era o ideal, mas era um começo, aqueles de prefeito e imbecis que estão na sempre curta fase de ser proprietário de lambedores de saco convulsionados. Fomos barrados, pois eu estava com roupa social e sapato, mas não tinha gravata. Comecei a negociar, e justamente quando a primeira noite já estava fracassando a si mesma, num broxamento defecado, caras quase muchas, alguém assoviou. E para minha surpresa, na hora nem agradável nem desagradável, apenas de uma bizarria espetaculosa, no mesmo momento fomos autorizados a entrar, mas que filho da puta, pensei, filho da puta, e eu comendo pão com manteiga e ovo a semana inteira, apenas dois lanches por dia pra dar pra semana, o cara me cobra, e o lazarento com uma puta grana pra comer cotidianamente (concluí, pois caso contrário não teria façanha de por alguém pra dento) em restaurante de granfina, sentei quieto, ele carregava meu relógio solto no braço, explicitamente para quem quisesse ver que tinha sido feito para um outro, comia sem mastigar pratos de um salário mínimo em duas colheradas, pedindo outro em seguida, Marcela totalmente quieta, sem encará-lo, nem mesmo olhá-lo, meio cabisbaixa, só não totalmente, pois mantinha evidentemente costumes propositais, ou não propositais, submersos, mas enfim, tenho sempre um juiz dentro de mim, e para piorar, um juiz precipitado, ela tinha costumes de criação da mulher do interior, daquelas que se não dormem direito quando jovens, exalam um aroma parecido com amora fresca que atrai os pedófilos, mas na verdade nem eu falei naquela mesa, ele disparou a falar, como se fossemos amigos de encontros cotidianos, confidentes, sem tocar no episódio da dívida em nenhum momento, mas acho que não por opção, pois parecia nem mais lembrá-la como questão apagada, pois concluída, e aquilo causou tal estranheza de interesse que depois de um tempo comecei a confidenciar também, e se houvessem bebidas além do vinho, descreveríamos até um assassinato se cometido, mas duas horas se passaram e resolvemos esticar, eu e fulano já havíamos nos entendido bem, esquecido o episódio, e sugeri um lugar daqui, mas disse o desgraçado sorrindo “Não, aqui não. Sempre há conhecidos, se querem torrar uma grana é destino cidade vizinha” “A mais perto fica á 30 quilômetros daqui” pela primeira vez falou Marcela, “Mas é pra lá mesmo que vamos”, bateu o punho cerrado na mesa. Esta cidade de que falo e que foi o início do deslumbramento e começo da espiral descendente, carregava em si um ar de distrito da grande cidade de que vínhamos, um lugar típico de magnatas que moram num casulo protegidos por uma segurança local particular, bem mais eficiente que a polícia, e bem mais interessada ao dinheiro também, por mais incrível que pareça, são comuns os casos de casas que não pagam a segurança serem assaltadas várias vezes, até começarem a pagar, e no caso de teimosinhos, a segurança mesmo deixa pista da autoria, como achar parte de um furto, ou o carro, se for o caso, dez minutos depois. Agora os responsáveis pelo ato? Nunca. Molecada de outro bairro ganhando troquinho, enfim, era um distrito disfarçado de cidade. Um terço da minha grana tinha ido naquele restaurante, mas sentia que valeu a pena, alguém ali estava junto, duplicando valores de diferentes essências, mostrando algum possível caminho e eu me preocupava com merdas não justificadas e se possíveis de aprendizado, comecei a notar. Ao sair o cobrador de dividas em banca de jornal sugeriu sairmos em dois carros, mas olhou bem para o meu e disse “venham comigo”. Acho que um Porsche 2006 não combina muito com um Fiat 98 de uma vovó, com fitas amarelas e brancas do Bonfim no câmbio e no vidro retrovisor esquerdo. Deu a chave pra mim, e disse: Vocês estão juntos, mulher sozinha atrás fica chato, mulher dos outros vindo comigo na frente do mesmo modo “. Marcela emendou quase encima da palavra final, e falando tão rápido que atropelou algumas delas:”Não estamos juntos”. Ele sorriu entrando no banco de trás com um sorriso bêbado, de um bêbado estufado de comida, em silêncio, quando entramos começou a fuçar embaixo dos bancos. “O quê foi?”, perguntei, “Perdeu alguma coisa”, respondeu “Espera.” Quase três minutos depois tirou um litro de Uísque quase cheio, talvez dois copos pela metade retirados, espumando um pouco na superfície devido ao chacoalhar do carro, quem sabe de agora ou mesmo de antes e virou o doze anos no gargalo, como se fosse pinga barata, derramando serelepe, chacoalhando os cabelos, e passou pra Marcela que ficou meio constrangida, mas no final acompanhou o gesto, por fim fizemos uma roda com a garrafa, e cada vez vinha com mais velocidade em minhas mãos de tal forma que eu quase não acompanhei o curso da estrada, e matamos o conteúdo em um pouco menos de cinco minutos da entrada principal da cidade vizinha. O anfitrião berrou, alucinado, arregalando os olhos antes fechados, como se já estivéssemos no centro da cidade: “Não entra! Pega a primeira á esquerda”. Só dava pra entrar pela esquerda, se eu soubesse não ficaria tal atento, mas tudo bem, em menos de dois quilômetros nós viramos. Era uma estrada fodida, além disso sem iluminação. Era fodida, mas era de asfalto, e serpenteava em meio á canaviais intermináveis, punha em prova a autenticidade do veículo, bem, serpenteada, porém única, só acompanhava o terreno irregular porque na realidade íamos.sempre reto, direção única não alinhada, uma eternidade da mesma estrada, e o dono do carro soluçando, de olhos fechados, mas acordado, grunhindo um pouco antes de passarmos em buracos, como se conhecesse não só as fendas no asfalto que poderíamos evitar, me falando, mas também o tempo do trajeto, uma vez que vi pelo espelho quando abriu os olhos no momento exato quando cheguei em uma encruzilhada sem placas e disse “esquerda de novo”, e em menos de duzentos metros nessa nova rota, a estrada passou a ser de terra, e estando mentalmente preparado para mais um bom tempo de volante, começando a me entediar, único elemento do fracasso, eis que o ilustre passageiro pede, com o mesmo tom simpático e cativante de antes, perdoe o uso de uma pobre ironia, mas dessa vez sem salivar pelos cantos da boca, pediu para parar; e o lugar? Bem, não tinha nada ali, ouvia-se aqueles sons da noite num campo natural de visão aberta em incondicional característica, e em termos de alma humana dava para ver três ou quatro fazendas, que o relevo permitia por ser montanhoso, imersos da massa negra em pontos de luz solitários ou acompanhados de mais um ou dois, no máximo, que provinham comprovadamente da mesma casa pelo espaço entre eles, gerando a unidade, mas não a identificação da estrutura geral. Ele começou a descer por algo que parecia ser uma estreita estrada mal feita, criada pela utilização ocasional em que pensando nisso perguntei do carro, não respondeu, era pra deixar ali mesmo, aberto ainda, vi depois. Pensei em abrir o dicionário algumas vezes, a fim de dar uma cara mais letrada ao relato, sem tantas palavras, recursos ou junções repetidas, já que não sou um escritor e sim um ex-estudante mentiroso e mimado, mas sinceramente gostaria de um aspecto de texto mais interessante, menos monótono. Não sei como está, pois ainda não li, apenas imagino-o quando ouço os ecos, mas não me centro neles, ganham um caráter de um mantra incondicional, ignoro-o por desejar escrever tudo sem parar até o final, vomitar de uma vez a merda atolada, e sinto que lê-lo me fará largá-lo por definitivo por vergonhas, de várias naturezas, ou constatação já percebida da perda de tempo. Mas acredite leitor, tais divagações são importantes para entender o desenlace final, que ainda é longínquo, e se é que ele ainda interessa. Aonde chegamos? Depois de uma puta caminhada, numa chácara encoberta, atrás de um sopé de montanha, totalmente clareada, o ilustre tocou a campainha, não ouvi nada, Marcela e eu estávamos um pouco longe, só sei que menos de um minuto estávamos dentro do recinto, acompanhados por uma pessoa armada que cumprimentou-nos com um gigantesco sorriso e não disse mais nada. Um figurão, com seus sessenta e tantos, apareceu acompanhado de dois seguranças vestidos de trapos, abraçou a todos, emendou: “cadê o carro? Vieram á pé?”, no qual o nosso guia respondeu entre soluços “queria fazer uma surpresa” “E quem são seus amigos?”, nessa hora pensei rapidamente que o ilustre nem sequer devia lembrar meu nome, apenas lembrava antes que eu lhe devia, e Marcela, bem, Marcela conhecia o episódio inteiro pelas entranhas, “Félix Salgado, prazer.” “E adorável mulher?” “Amigos somente. Meu nome é Marcela”, estendeu a mão de cumprimentar, mas ele a beijou, então subimos pro segundo andar aonde um som de festa ia aparecendo a cada passo até que enfim se revelou, depois de uma porta de seis metros e tão adornada que de pronto desvendava a megalomania presente no figurão, na sala ninguém tocava piano, e nem haviam bandejas metalizadas, nem alguém vestido de garçom ou empregado, o som era de um rádio amplificado por várias caixas de som espalhadas no cálculo pela sala toda, as iguarias, ou oferecimentos, ficavam numa mesa grande e as poucas pessoas que não estavam vestidas daquele modo idêntico, ao menos usavam alguma cor presente na maioria, era uma cena verdadeiramente enjoativa, Marcela por sorte estava de saia preta, única das peças de roupa que ela usava que combinava, mas tinha alguma. Sim, enjoativa, mas em menos de quinze segundos comecei a me centrar nos detalhes, talvez por querer achar uma razão ou até mesmo um algo que provocasse mais interesse ou diversão, e dentro desse silêncio escondido descobri algumas coisas legais. A quantidade de mulheres era quase sete vezes a quantidade de homens, mas desses sétimos, seis sétimos delas aparentava ter mais de cinqüenta anos, vestidas impecavelmente iguais, todas, e pouco interagiam, pareciam estar ali apenas por uma obrigação social, daquelas que não se questiona, mas uma condição de obrigação involuntária, talvez por conhecer demais aqueles encontros já que pareciam acontecer á muito tempo devido ao fator de minha pessoa observar poucas pessoas deslocadas, sem jeito, como se procurassem um apoio, aliás, quase nenhuma, só não digo somente eu e Marcela, pois não posso afirmar com absoluta certeza, na verdade eu já estava me sentindo bem, á vontade, pois essa era sim uma daquelas raras festas onde você pode ficar parado, quieto, observando sem ninguém lhe perguntar motivos, tentar te “animar” em atitudes ridículas, ou simplesmente fazer cara feia. Ou todas as alternativas com intervalo de tempo ou juntas. Olhei depois de um tempo, na verdade por causa de um simples e comum lampejo de lembrança, para a nossa companheira que estava com os olhos fixos na parede á nossa frente, n[os continuávamos ao lado da porta, exatamente onde tinha nos abandonado o anfitrião á mercê da certeira sorte, segundo seu comportar, e fixando claramente, porém sem palavras, que ali éramos mais um daqueles, já que de tão á vontade não haviam distinções. Pareceram cinco minutos, tamanhas novidades, mas foram quase duas horas, disse-me mais tarde Marcela aborrecida, e apareciam copos em minha mão quase que do nada, digo quase porque um momento, e somente um, mas de flagra confirmado, eu olhava para o chão, admirando os desenhos detalhistas e geométricos do azulejo, quando vi uma mão trocar a taça, mas não cortei a descoberta por uma curiosidade tola e continuei na minha divagação estilística. Quando de acostumei á tudo e percebi o meu exagero gigantesco e inútil de importância, provavelmente devido á embriaguez, aí eis que estava sozinho no mesmo lugar, sem sinal de meus dois amigos e com o copo vazio a um certo tempo, decidi explorar o lugar, aquela sala era com certeza a gema do negócio, o núcleo, o centro, pois haviam dois largos corredores, um do lado esquerdo outro do direito, que já havia reparado, vendo as mesmas pessoas indo e vindo, e além do mais, meus amigos não estavam mais ali e a sala estava consideravelmente mais vazia, percebi pela primeira vez, pois analisava com curiosidade apenas o espaço físico e raramente, ou superficialmente, de segundo plano pra baixo, as pessoas. Parei exatamente no meio da sala, depois de uma corridinha ridícula e desajeitada, completada em microssegundos devido ao curto trajeto, parada de maneira súbita, quase gerando uma sigilosa queda, no apontamento cerebral dizendo que juntos ainda não havíamos escolhido quais dos corredores eu entraria, coisa que nem me punha reflexão ou dava importância no dia-a-dia, escolheria sem pensar qualquer uma das portas depois a outra, mas naquele estado de acomodada catarse fez-me dar uma importância descomunal á isso, a impressão era de uma metáfora que espelhava minha vida, mas não sabia dizer bem porquê, já que era simples, iria acabar nas duas como todos, mas isso na hora não veio, pensei que escolheria uma e pronto, essa definiria tudo e eu não precisaria, nem ao menos desejaria ou até mesmo acharia repugnante a idéia, algo próximo da impressão que temos no castigo, em sua forma mais ampla, pois poderia perder coisas do lugar que eu estava e não me perdoaria por isso. A direita parecia-me muito óbvia, mas ao mesmo tempo o comum causa surpresa, mas optei pela esquerda mesmo, mas nem cheguei a entrar nela, pois ao lado da porta, ainda na sala, parada ao lado direito com as duas mãos para trás, cruzadas, apoiadas na parede, a perna esquerda dobrada na função de um apoio também, havia uma mulher de saia preta curta, cabelo preso e salto que me perguntou de forma apressada se eu estava bem. “Sim, porquê?” “Não me parece, parece que está doente” “Como assim doente?” “Parece pálido e fraco, muito magro. Está com febre?” “E eu sei?” “Deixe-me ver” pois a mão, que estava gelada como um cadáver de gaveta, na minha testa com uma rapidez e força que fez um estalo seco que pareceria aos fora do assunto que eu levara um tapa, não fosse o descanso e permanência da mão, e começou a me falar coisas, perguntar coisas, expor opiniões, contextualizar piadas prontas, gozar brincadeiras, fazer pequenos e sutis jogos, me fazendo essencialmente passivo, num monólogo que ás vezes soava irritante, ás vezes delirante, um delirante de se admirar, mas essa troca de sensações extremas era tão veloz e tão sem pulso, imprevisível, de uma forma estrutural indecifrável, que no final acabei achando tudo que vinha de sua boca, maravilhoso. Infelizmente veio a pausa, que o medo de sua vinda já me incomodava anteriormente, e piorava a situação a idéia que ele vinha acompanhado do remorso e a própria raiva de senti-lo e não conseguir dominá-lo, pois atrapalhava a atenção nas ações presentes, mas bem, o caso é que o silêncio veio. Ele sempre vem. Agora era minha vez de falar. Esperei um pouco, um pouco que pareceu a eternidade e antes de ficar realmente esquisito, na verdade eu estava mesmo, parei de tentar pensar no que falar e vomitaria tudo que viesse. Abri a boca como num bocejo, dobrando a coluna para trás e apontando o indicador da mão direita para cima, cotovelo dobrado, quando levei um tiro na boca. Esse foi o meu primeiro dia provando o fruto da idéia. Acordei num hospital, lembro-me só de ter deitado em posição fetal e chorado como um bebê feito de dor e principalmente de susto, tinha mais lágrima e saliva na minha camisa do que sangue, e segundos antes de apagar, enquanto eu gemia, chorava, gritava, xingava e engasgava ao mesmo tempo, um volume gelatinoso preenchia minhas calças na parte de trás como se fosse independente do meu corpo, tivesse vontade própria, vida, pois eu não sentia que aquilo vinha de mim, não o controlava, e aquele volume aumentava cada vez mais, e não pude sentir sua massa total porque foi justamente no meio desse fato que eu apaguei, podia sentir uns grossos curativos e pontos na parte esquerda da boca e ao longo de todo o maxilar esquerdo até a ponta inferior da orelha, ao meu lado uma surpresa, ela, a mesma que conversara comigo antes dos espasmos fisiológicos e do desmaio, lendo uma revista ao lado da cama, de pé, totalmente diferente, passaria por estranha não fosse o reconhecimento pelos olhos e pela áurea de especialidade, pois estava sem a pesada maquiagem, vestia roupa cotidiana, porém percebia-se que era vestimenta cara, e estava de cabelo solto, não havia me visto despertar, então murmurei um qualquer coisa.e ela sorriu. “Que azar, rapaz. Nunca tinha acontecido isso antes no espaço Gordos, e você foi pego por uma bala perdida de uma briga da qual você não teve absolutamente nada a ver. Sorte o tiro ter sido de raspão, foi como se tivessem feito um cortezinho um pouco sério com uma faca de cozinha, mas do jeito que você esperneou, achei que a bala tinha se alojado no seu cérebro” “Que ótimo. E meus amigos?” – eu não conseguia falar direito, os curativos atrapalhavam mais do que o próprio ferimento, sentia, e murmurava tentando vencer a dor, repetindo algumas palavras ou a frase inteira, dando pausas, dividindo palavras lentamente, corrigindo com gestos de cabeça quando mal entendido, mas descreverei o diálogo de forma limpa e como me lembro, ou pelo menos equivalente ao original nas partes mais importantes, sem colocar as dificuldades comunicativas para não causar aborrecimento ou uma escrita mais banal ainda - “Que amigos? Você estava sozinho.” “Não, eles tinham saído, mas eu estava distraído e não vi pra onde foram. Estavam lá.“ “Não vi ninguém. Dom Quixote sempre recebe os convidados somente, depois some.” “Quem é?” “Não conhece? Então como estava lá? É o dono da casa.” Qual é seu nome.” “Félix Salgado” “O meu é Geórgia, trabalha no quê? Tem parentes pra quem eu possa ligar?” nisso apareceu um médico e uma enfermeira que mudaram de expressão na hora exata que nos viram, quase gritando que eu não podia falar, nem me esforçar facialmente pra qualquer coisa, e deram também um sermão especifico á Geórgia falando que qualquer pessoa de bom senso devia tocar a campainha de chamada para comunicar quando um paciente inconsciente acordasse, mais calmo, o médico começou a explicar a situação dizendo que o tiro não tinha penetrado, não quebrara ou rachara nenhum osso, no máximo teria uma pequena cicatriz que uma barba mal feita facilmente cobriria, frisou a minha sorte para que eu desse importância e disse que sairia dali no máximo em dois dias, mas era obrigação repousar em casa até os pontos fecharem e voltar para os últimos cuidados. Pensava no dinheiro que ainda tinha, e era muito devido ao fato de gastar somente no restaurante, e que a segunda noite seria a soma do mês mais setenta por cento do mês passado, não, não, claro que não, não sairia em outros dias acontecesse o que acontecesse, ritual é ritual, uma certeza que não se questiona, um fragmento projetado e nunca transposto-adaptável em transfiguração. No meio dessa alegria repentina, visão de outro ponto, Geórgia se despediu suavemente no que respondi num adeus seco, na ânsia de ficar sozinho com meus pensamentos que começavam a me agradar, mas não exclusivamente pelo fato deles estarem me entretendo, na verdade um sentimento acompanhava o outro numa mistura inédita que expunha explicitamente os elementos, e por conseqüência, valiosa pela sua raridade, e na única porta do quarto, escancarada de tão aberta, pouco antes dela passá-la a fim de alcançar o corredor dos leitos para em conseqüência sair daquele hospital, parou por um instante e apoiou a mão direita na soleira, virando o corpo na minha direção apenas da cintura pra cima, meio torta e perguntou se eu podia dar meu telefone, se podíamos nos ver novamente, mas segundo ela, que já foi emendando a frase rápida e sorrateira como um aviso para os dois subconscientes, somente para saber das minhas melhoras. Fiz um gesto pedindo caneta e papel, achei-me meio idiota por não ter pensado nisso antes, mas o fato dela presumivelmente também não ter pensado diminuiu meu constrangimento e mal-estar. Anotei e desenhei uma carinha feliz embaixo, bem grande, muito maior que o número que estava no canto extremo superior direito, no início da folha, quase passando o papel e depois de perceber que ela notara o desenho, moldei um gesto de aparência reflexiva procurando passar uma imagem exata deste, dando-lhe autenticidade acredito, e nessa pausa completei a carinha com um corpo de cachorro, ou qualquer coisa que tenha quatro patas e rabo que preferir, e que era três vezes menor que a cabeça. Botei meu nome meio ilegível, como se fosse um cabelo, fazendo um abundante barulho caricato ao rabiscar, e entreguei. Ela fez uma cara de decepcionada e rasgou instantaneamente somente o pequeno pedaço lateral superior que continha o telefone de maneira um pouco agressiva em escárnio, vi que ainda virou o rosto distraidamente na mesma direção do corte, enquanto o fazia, acompanhando-o somente com a cabeça, os olhos sem destino, e, além disso, eu tive a impressão que um dos números finais ficou no papel desenhado, ela deixou a folha rasgada encima da mesa de cabeceira ao meu lado e saiu sem falar nada.
Recebi alta em três dias, um pouco menos da metade do tempo que no primeiro dia previam os profissionais, conversava bem, embora lentamente e excessivamente articulado, acuando divisões da frase, e ligara o celular para que minha avó finalmente ligasse, desliguei no hospital, não queria que ela tivesse conhecimento para evitar a desmascararão da mentira de viagem, ainda estava viajando para ela, decidi manter, mesmo porquê a situação favorecia uma desculpa do celular estar fora de área, os médicos acreditaram que eu não tinha ninguém, e realmente não tinha em família, somente Maria Helena.
Segui o restante do mês dentro do plano, tirando as recaídas na justificativa da sobra da quantia inicial, e decidi manter Marcela na idéia, no entanto, desde aquela festa o celular dela encontrava-se desligado e também não a achava na casa que habitava sozinha. Perguntei á dois amigos seus, conhecidos meus, e estes também não sabiam e nem tinham idéia de sua localização, o que me levava a crer que o nosso articulador daquele dia, aquele de quem me promovi ex-credor, também sumira, mas não tinha nenhuma forma de tentar um contato para confirmação. Decidi o quê já está óbvio mesmo, mas tenho que escrever literalmente para um possível leitor energúmeno (meu filho talvez): eu precisava voltar naquela chácara. Pensei dezenas de vezes na possível abordagem, mas não achava nenhum plano de abordagem em definitivo, então parei de tentar bancar o Charles Browson e decidi bater e perguntar mesmo, como uma boa e velha senhora procurando a netinha. Fui lá de dia, peguei um táxi, a grana que sobrara tinha ido praticamente toda, mas foi a única das vezes que usei ela sem arrependimento, era uma espécie de dívida, para Marcela e novamente para aquele que eu acabara de pagar em prejuízo. Difícil foi achar o lugar, se lembrasse de pedir o telefone para Geórgia seria tudo mais fácil, mas enfim acabei achando com a ajuda do taxista e alguns sitiantes da região, bem depois de muitos círculos largos com o taxímetro rodando. Tudo era muito diferente de dia, parecia que era a primeira vez que eu estava ali, incluindo a própria trilha até o casarão, mas lembrei que estava sóbrio e entendi a situação. Toquei a campainha. Nada. Toquei de novo. Nada. Quando ia tocar pela terceira vez fui surpreendido por gritos nas extremidades da casa, pelos dois lados, por quatro sujeitos magros e Barbados que saíram da mata que cercava o casarão, vieram dois de cada lado, no mesmo passo lento de precaução militar não propositada, três com espingardas, apontando em minha direção, um carregava um revólver na cintura. Este último que me deu palavra e tinha algo que de primeira vista aos olhos atentos demonstrava ser o chefe daquele pequeno bando, ou mesmo de todos os outros em turno, se o tivessem, mas não sei se devido á sua postura, linguajar, vestimenta ou face que isso se colocava evidente. “Quem é você?” “Meu nome é Félix Salgado, gostaria de falar com... – interrompi por estranheza que o nome ou apelido me soava, mas concluí - Quixote” “Dom Quixote, rapaz. Demonstre respeito pelo meu patrão e isso é uma invasão, a partir da porteira da estrada já foi. Sabia que posso meter uma bala na sua cabeça que estarei no meu direito?” “Calma, meu amigo. Desejo uma conversa curta com ele, só isso”.“E posso saber do que se trata?” “Vim numa festa aqui com dois amigos esses dias, desde então não consigo mais encontrá-los, queria ver se ele sabe de alguma coisa que ajudasse ou que pelo menos aliviasse preocupação”.“Hum. Admiro. Espere aqui, mas não saia daqui por nada. Vou falar com ele e se você der muita sorte rapaz, vai poder entrar. Não saia daqui, pois isso vai demorar um bocado. Cabresto! – gritou olhando para o negro franzino de espingarda – fica aqui com ele, outros dois, vamo”. Não demorou mais que doze ou treze minutos, chegou desta vez sozinho, á cavalo, pelo portão principal e disse: “Olha, ele disse que conversa sim, que pode te ajudar, mas não hoje. Ele disse para você aparecer na quinta quem vem, no início da madrugada ou pouco antes, entre onze da noite e uma da manhã, haverá uma festa e você é um convidado especial. Disse também que viesse também para se divertir, esquecesse as cortesias que em alguma hora da festa te chamaria para conversar em sua sala em particular”.Agradeci e preparava-me para ir quando escutei um assovio tão forte, espicaçado e vacilante que pensei que era um código para descarregarem as azeitonas dos canos nas minhas costas, “Desculpe, patrão bem que fala que sou esquecido. – sorriu um daqueles risos de quem tem medo - se eu não falasse isso patrãozinho fazia sopa dos meus ossos” – riu mais confiante e aliviado – “É pra vir de verde ouviu? Verde. Social, se quiser não percisa ser terno, gravata mas traiz blazer, camisa só não pode – fiz um sinal afirmativo com a cabeça e um pouco antes de descer a pequena ribanceira e sumir do campo de visão dos ainda ouvi: “Verde”. Na terça da outra semana, dia 12, seria o dia do mês esperado, refleti que poderia adiar, mas a idéia de repetir a experiência, por mais interessante que tenha sido, como já falei, me expunha a uma coisa que não fazia parte do projeto e que eu gostaria de evitar a qualquer preço: a inalterabilidade, o círculo vicioso que é um dos elementos que formam a minha vida patética no cotidiano. Segui minha rotina esperando a terça que estava fixa no objetivo, mas chegando nela vi que era um dia sem graça, sem expectativas, sem cor. Marcela ajudaria muito. Acabei deixando pra quinta, na prática os caminhos para o objetivo são flexíveis, mas no final comprei terno de bacana, o quê aliviou a única e principal preocupação, já tentou achar ternos verdes prontos, de fábrica? De qualidade, sérios? Em verde é impossível, achei um só. Estava numa página da internet com uma foto nada nítida, única, num manequim sem cabeça e sem pernas, de baixa definição, de uma loja no Rio Grande do Sul, ainda por ironia num momento em que não pesquisava sobre, mas até que faziam a entrega em pouco tempo, mas não iria com algo feito para brincadeiras que desconheço e em material porco, começara a ficar fresco .Félix escondidinho antes de sair buzinando sutil, mas altamente persuasivo, nas minhas orelhas da consciência. Cheguei de táxi na porta, era meia noite e dez, o caminho desta vez sem erros, decorado e como eu me lembrava no primeiro dia, havia uma pequena fila, na minha vez, ao chegar no portão e conseguir ver o rosto do leão de chácara, reconheci um dos homens que me abordara naquele dia á tarde. Ele simplesmente sorriu e estendeu a mão direita para além do portão, sem me ponderar vocábulo algum. Fui sozinho, a casa era tão gigantesca que beirava o ridículo, fiz-me obrigado a ficar acompanhando de longe os passos de um grupo de mulheres que entrara antes. O salão utilizado era outro, ficava no corredor á esquerda do utilizado na primeira festa, na primeira porta no fim deste, um salão duas vezes maior e com um palco relativamente grande, não que eu entenda de palcos, onde um conjunto tocava música instrumental pra gringo e novamente a predominância de mulheres em relação aos homens era gritante, a grande maioria delas entre cinqüenta e sessenta anos, vestidas totalmente iguais, conversando quase todo o tempo somente entre elas e alguns como eu usavam roupas combinando com a coloração verde ou os desenhos de ornamento da sala, concluí que os que não combinavam eram em sua maioria novatos, e talvez assim fosse uma maneira de identifica-los quem sabe para que os convidados “veteranos’ que interagissem medissem palavras, ocultasse surpresas ou até mesmo “preparasse” o iniciante aos poucos. Ainda não sabia para o quê, estava ficando neurótico, talvez, mas divertia-me acreditar nisso, em algo obscuro ali, dava algum interesse pra uma vida vazia, contudo, também quem sabe, esse fosse o propósito pensado pelo gordo: simular o mistério, algo que intriga a maioria das pessoas e usasse aquilo como mais um quitute impalpável oferecido na festa. Peguei uma bebida, mas esperei consentimento. Apoiado em pé, tal como em minha primeira vinda e como alguns leitores, se ainda existem alguns de qualquer tipo, de natureza sabichona, sabem do comportamento, sim, procurei Geórgia o tempo todo, até inquieto, pegando-me ás vezes tão compenetrado que esquecia por um momento o motivo principal de ter ido ali, mas principal talvez por ser somente um objetivo causador inconsciente, e quando me flagrava tendo esses desvios eu me concentrava em um ponto morto da sala, um objeto, um fragmento de cena estática ou um ou mais indivíduos.
Não tive idéia de tempo novamente, não frustrando a expectativa sobre isso, quando vi o patrão sair calmamente da passagem principal, no corredor esquerdo (em relação á primeira sala), eu conheci melhor Dom Quixote posteriormente, de adianto digo que era gordo, usava terno socado, tinha barba longa e crespa com o corte não definido e sim natural de crescimento, uma corrente que ia da fivela frontal até o bolso direito onde se ligava um possível relógio, era visivelmente velho, mas com cabelos tão negros que reluziam e tão lisos que anexavam ao conjunto um contraste inegável com relação às dobras carnudas do rosto, rosto esse bem avermelhado de sol e que carregava sempre um sorriso forçado, mas cordial e nunca aparecia sozinho, no mínimo com um capiau magro, mal vestido e com arma em punho e carregada, á mostra, quando não quatro deles ou cinco, sua considerações eram sempre curtas quando um assunto típico de roda de apresentações ia se alongando naturalmente e por fim ultrapassava a mera função de maquiagem social, retirando-se com uma galante despedida rápida e na seqüência. Cumprimentou-me e quis saber se eu havia experimentado uns dos canapés de certa mesa, afirmei para encurtar e direcionar o assunto, postura que de pronto foi percebida pelo anfitrião que era mestre em interesses e não via mistérios em diálogos, e se via algum a felicidade da surpresa fazia brilhar seu nariz de batata, e alongava por quantas horas fossem necessárias a fim de absorver todo o conteúdo da novidade, mormente os mais comuns em conversação de negócios, os diálogos maquiados. Convidou-me a acompanha-lo até a “sala de negócios” – engrossou a voz em retumbo, mas tal recinto era apenas a biblioteca que tinha uma espécie de sala aberta em seu interior para leitura, um miolo espaçoso, sala que era tão bem montada, pensada e equipada que me enganou facilmente, soube de sua real função no futuro, por isso transcrevo com total segurança, se não soubesse esse detalhe desnecessário, como todos aqui, passaria em branco e o desgraçado, numa típica brincadeira de obeso milionário, enganaria com êxito não só eu mais a meia dúzia de leitores desse entediante relato, bem, a real sala “de negócios” nunca seria aberta a mim, ainda mais com um assunto trivial (todos os meus imagináveis seriam), caso do qual o “superior” aqui no caso apenas acompanhava por diversão e passatempo, mas enganou-me na época, com isso tinha apenas o intuito de provocar em mim a sensação permanente de um portador de assuntos de importância e que de certo modo estava em posição de igualdade com o comparte das ‘negociações”, assim eu falaria mais solto, me abriria mesmo, seria talvez até agressivo, escolheria poucas palavras provindas da antecipação cautelosa da linha de raciocínio e pensamento, ostentaria uma pompa realçada e talvez até exigisse ações imediatas, ou seja, diversão garantida para um rato velho como ele. Esqueçam a conversa, mesmo porquê nem lembro dela direto, nem ao menos sua estrutura para colocá-la o menos fiel possível, mas o resultado dela é que tem uma importância imensurável. Certa altura do meu monólogo Quixote virou o monitor de seu laptop para mim no meio de uma frase que eu verbalizava, nele, vi meus dois amigos no quê parecia ser uma webcam, sorrindo, vestindo roupas grossas numa paisagem de predominância branca de gelo. Estão na América, esquiando. Foram com minha sobrinha, da qual exigia minha companhia, como homem muito ocupado, convidei-os e lá estão, ele me disse, não com essas palavras e não tão diretamente, mas com o mesmo conteúdo. Dei um soco na mesa. O capiau em pé ao lado da mesa, mas mais próximo de uma das estantes de livros, deu uma estrebuchada. Quixote apenas o olhou nos olhos. Devia ser a comunicação cotidiana adquirida em convívio e com seleção dos mais fiéis capatazes devido quem sabe ao castigo de morte. Voltou a sua posição, levantei-me, cumprimentei-lo por medo e não respeito e saí pela porta, ele nada falou. Ia direto á saída, andando rápido quase correndo, o pau mandado que me acompanhava sempre dois metros pra trás, dando “pequenas” corridinhas quando vacilava o ritmo a fim de não aumentar ainda mais a minha vantagem. O negócio do cara era arma mesmo, via-se no próprio jeito invisível que a segurava com a mesma ou maior emoção de um bombeiro depressivo e desacreditado que se via de repente saindo de um prédio em chamas (como um presente inesperado do acaso a um ego vencido e derrotado), correndo em câmera lenta, carregando um bebê (eis a analogia direta com a arma) salvo das chamas ao mesmo tempo em que o foco da cena acomodaria um fundo embaçado do desabamento do edifício. Esse capataz devia ter matado uns trintas, mas na mão, conflito fechado, um soco desmontaria seus membros como peças de um LEGO espalhando ossos e uma fina película integral de epiderme. Já com os passos normalizados, e alcançado pelo meu acompanhante vigia, parei uns quatro passos antes de completar o corredor e atingir o salão, ele parou também e não estranhou, como num videogame pretensioso a possuir alguma inteligência artificial nos inimigos mas cheio de falhas ridículas, aí virei para trás e perguntei ao sujeito se eu ainda era bem vindo ao lugar mesmo com a atitude grosseira, da qual não me arrependia de verdade e embora não pensasse isso realmente e ainda estivesse me dando razão o queria por motivos já citados anteriormente, motivos dos quais lutara para afastar acreditando na resistência definitiva, no fundo apenas uma justificativa para não trabalhar uma resistência fixa e totalizada para a hora decisiva, enfim, ele respondeu depois de uma pausa com quadro de face em cérebro-tainha, disse que conhecia bem o patrão e que pela expressão e comportamento e ausência de ordem, mesmo que simples, eu ainda era um convidado, pensava se tudo isso verbalizara-se naquele olhar de alguns segundos, pois um sujeito como esse não ousaria colocar palavras na boca de seu chefe. Não foi preciso chegar ao salão para notar que o número de pessoas triplicara devido ao barulho, mas não nomeadamente nas conversas e sim no som dos passos, sons de tamancos e sandálias salto-alto se arrastando. Não precisei procurar muito mesmo com tantas figuras parecidas e mesmo as extremamente distintas não escapavam da constante confusa. Vi Geórgia que sorriu naturalmente, muito receptiva, surpresa, e mesmo puto com tudo e desconfiado na autenticidade dos fatos fiquei ali por ela. Sua sensação era brusca, repentina, tocava de maneira aberta e também fria, não conversávamos, jogávamos palavras ao ar por costume dos homens e de repente tive um estralo rico, especial notoriamente, já que em seus igualmente ricos componentes também carregava uma alegria de ode patético e boçal á vida, um estralo pertencente aos gênios, diferindo destes apenas em conteúdo prático, era uma coisa idiota e banal: Ali não se gastava um só vintém e eu tinha muito dinheiro. Ofereci a idéia de mudarmos de local a ela que agarrou de pronto e pediu estimulada e decidida se podia escolher ou indicar algum para minha possível aprovação, respondi que por mim ela escolheria tudo na noite, desse jeito mesmo, nessa leal ordem de letras, escapando intenções, confirmando um conhecido conceito de base constante e qual pode se manifestar, sem anexos e ainda crua em alicerce, em centenas de dessemelhantes exibições exteriores, e que é em sua quase totalidade odiado pelas mulheres devido á escolha eterna destas pelo sutil natural, em motivo de orgulho ou instinto superficiais para o gênio masculino, e que assim sendo acabei dando a oportunidade para uma penosa, estendida, entediante e massiva queixa ou até uma súbita escusa, curta e fatal, mas ela pareceu nem ouvir o comentário, como se já esperasse a resposta afirmativa de sua pergunta, fosse tal resposta elaborada de modo x ou y, com adendos ou meramente lisa, não importando sua formulação, sendo bem recebido até um resmungo, afinal, ela sabia que incondicionalmente obteria sempre a mesma resposta.
“Estou de carro”, ela me disse muito afável e abaixando meu celular frouxamente quando percebeu que a chamada que eu fazia se tratava de uma ligação para um serviço de táxi, percebeu tirando-me educadamente da única forma de comunicação do aparelho, quando notou, pouco tempo depois de eu começar a explicar calmamente ao motorista o trajeto até o casarão, que era longo e qual também um mínimo erro resultaria em atrasos e aborrecimentos consideráveis. Após a sua fala olhei-la um pouco nos olhos e levei o aparelho ao ouvido esquerdo novamente cancelando o pedido sem dar razôes, desligando rapidamente. Saímos. Próximo ao portão principal, o capiau que me guiou e até intermediou de certa forma a conversa responsável pelo inesperado, mas possível, encontro com Geórgia, esta que me divertia no restante do mês em pensamento e pelo adiamento do dia do plano e convite pessoal, o capiau me acenou simpático antes de cruzarmos a entrada, e quando passando em definitivo os domínios da casa e estando ele ao meu lado, falou, visivelmente envergonhado e articulando apressado, como se me aborrecesse ou estivesse tomando meu tempo: “Doutor, meu nome é Osório. Só queria falar que gostei do senhor. Já vivi muita tocaia de conhecido próximo nos tempos de amargura, antes de servir meu bom padrinho que me acolheu e me amparou, Seu Dom Quixote e posso garantir que peguei prática na coisa, consigo saber de pronto se um homi é homi de boa fé. As veis só pelos olhos, as veis pelo rumo da prosa ligeira ou de palestra ou até no jeito de andar”.– fiquei realmente bajulado, mas logo tive pena, para ele eu era um homem superior, rico, doutor enfrescurado, um amigo do chefe, em sua ingenuidade isso corresponderia a uma certa equivalência mesmo que não totalizada, mas mal sabia ele que durante 95% do mês eu passava, quem sabe, mais necessidade que ele próprio, aí respondi cordialmente dizendo meu nome, mas sem perder a pompa do meu personagem que a esta altura já simpatizava, ele então pareceu feliz, dei o braço á Geórgia em forma de V, apoiado na cintura, e então saímos caminhando calmamente com ambos vestindo narinas expansivas e empinadas, sentindo o odor noturno do esterco recente, caminhando no meio da mata como um casal de ingleses do século dezenove desfilando nas ruas principais ao cair da tarde e que não fodem á anos, eu, ela, as árvores, a terra, o esterco chutado e meu terno verde. “É esse” – apontou ao carro que não estava em nossa frente, mas ao primeiro do lado direito deste, ofereceu-me a chave para dirigir e sobre o quê respondi que não guio carro das outras pessoas, não retifiquei o motivo e ela mesmo insistindo pela segunda vez em vão, felizmente não perguntou o porquê que não saberia inventar, talvez passasse por excêntrico e respondesse como direcionado á uma criança insistente, um porquê sim, mas nunca revelaria o medo de batê-los e não ter depois como pagar. Mas ali? Ali eu era rico, ostentava o ar de despreocupação financeira e faltava-me em soma as únicas e poucas pessoas que me conheciam na minha dureza cotidiana. Podia ser tomado em totalidade pelo personagem que me pulsava nas entranhas e que sua existência não fora planejada, que em verdade apareceu-me completo e inesperadamente como um animal desconhecido, porém simples e que mesmo deste modo e de relevância ridícula faz vibrar o ramo da biologia que tem tanto descrédito e deboche por procurar pés-grandes, chupa-cabras e vermes do deserto. Como sabido, estávamos na área rural da cidade vizinha á minha e saindo dela já não sabia onde eu estava nem onde estava indo e também não ousava perguntar. Desde que entrávamos no carro não havíamos trocado uma palavra, somente ás vezes eu olhava para ela e virava o rosto ou ela olhava para mim e sorria, não virava a cara, esperando que eu olhasse em resposta e em seguida voltava os olhos pra estrada sem desfazer com pressa o sorriso. Chegamos em um estabelecimento que eu desconhecida. O prédio tinha dois andares e havia aquela característica fila clichê de cinema. Minha discreta cicatriz da boca até brilhou de tanta felicidade. Um lugar aparentemente perfeito que eu sempre almejei para o plano que até agora se exibe chocho e apagado, gerando mais frustrações do que prazeres. Uma que fosse minha sapiência não mais me importava, seguia como um louco de incertezas e entrei tão facilmente qual um rato em um galpão de fazenda feito para guardar ração e quase abandonado pelo motivo da morte ou da venda recente da grande maioria dos animais. Sentamos nas cadeiras de fronte ao balcão do bar e lá ficamos até experimentar todos os setenta diferentes drinques, cada um custando quase o salário de uma semana de um cortador de cana ou catador de laranja. Depois, fui apresentado por Geórgia á centenas de pessoas quando já estava extremamente bêbado e dentro do cú da madrugada, e embora não lembre o rosto de nenhuma delas, lembro da sensação de divertir-me e de divertir. Acordei num hotel. Sozinho. Numa cama larga, de gravata solta e calçando os sapatos. Paletó na cadeira ao lado da cama. Nem idéia de como havia ido até lá, mas consolava-me o fato de não ter ido para casa com companhia e estragar as aparências. Sobrou-me apenas alguns centavos e eu nem me lembrava no que tinha gastado, apenas lembrava dos drinques iniciais que eram caros, mas ainda assim não deram um quinto do que eu tinha. O hotel? Acredite, sobrevivente do texto, já estava pago por Geórgia, disse-me o recepcionista quando assinei para sair, e eu achando que eu mesmo tinha pago na noite anterior com parte da minha quantia aglomerada. Tamanha ingenuidade confesso que envergonhou a mim mesmo. Obviamente que a quantia para a aparência que eu desejava não era o suficiente, além disso, fui descuidado a ponto de comprometer todo meu sacrifício por nada, e teria passado um aperto não fosse essa sorte rara e Félix Salgado teria que ligar para a vovó para conseguir pagar a conta da diária de um hotel cinco estrelas na entrada de uma cidade ádvena á noventa quilômetros da minha cidade. O problema um estava resolvido antes mesmo de eu conhecê-lo. Problema dois: como voltar pra casa? Polegares opositores nos diferem de outras espécies. Consegui após contadas três horas e vinte e oito minutos ininterruptas de puro sol latente em minha cara, aquele sol próprio do fim da manhã e meio do dia, e como não bastasse, fui presenteado com algumas dezenas de graças dirigidas aos gritos, variadas em intenção, exposição e conteúdo, dos tripulantes dos carros que passavam por mim muito próximos e em alta velocidade. As frases que entendi eram em sua maioria centradas ou integralmente direcionadas no fato de eu estar usando o terno verde que me ardia o corpo e parecia estar colado em minha pele, em pouco tempo ele pesava como uma caixa industrial de arroz pra transporte interestadual, refletia essa sensação nos meus ombros e colunas que ficavam curvados cada vez mais para frente, e ainda aguçava o cansaço do braço que precisava estar constantemente na posição de carona, obrigatória porque é quase universal, cansaço esse que não aliviava ao menos um momento mesmo que alternando a função ora no braço esquerdo, ora no direito, mas afinal, era minha única roupa disponível que se encontrava muito amassada e molhada de suor, pois dormira com ela sem o paletó do conjunto.
Quando finalmente parou alguém, este foi um caminhoneiro, concretizando a possibilidade eu inicialmente já julgava a mais “enquadrada” por ser mais típica, e por isso mesmo igualmente provável. Foi muita prosa durante a viagem para alguém que não estava a fim de falar, como eu, mas a felicidade era tanta por estar indo pra casa que não tive coragem de cortá-lo em um só momento. Depois de um maior tempo de viagem do que me lembrava no dia anterior, ele anunciou a chegada que me passou despercebida tamanha concentração que eu colocava em alguns pensamentos que me invadiram aos poucos. Deixou-me na principal entrada da cidade, que era metade pista metade adiante avenida, atitude que avisara antes dizendo que aquela minha cidade não era seu destino final e sim apenas se encontrava no caminho deste. Era uma longa caminhada que eu iria fazer de bom gosto, sem lamentações, porque mesmo longe de casa, eu estava em casa. Coloquei o terno dobrado ao meio no braço, agradeci e saí caminhando. Quando estava completando aproximadamente um terço do caminho aconteceu uma desgraça: uma caminhonete passara por mim buzinando, cumprimentei levantando a mão e não dando importância, pois ou o cara me confundira com outro ou simplesmente praticava o popular e irrelevante cumprimento entre desconhecidos, como acontece cotidianamente. Não. Deu marcha ré e parou do me lado. Continuei caminhando olhando para frente. “Félix!” Não teve como não olhar. Era incrível e sem nenhuma essência definitiva ou parcial dentro da região cerebral das mais simples sensações emotivas. Dom Quixote sentado no banco do passageiro, um homem sorridente de óculos escuros ao volante e três sujeitos armados na carroceria, um destes, que abria um sorriso simpático e aparentava ansiado para ter uma conversa que sabia que não ia acontecer, era aquele que me tinha estimado, o que guiara e ficara na sala no dia da entrevista, também abrindo o portão na saída. O Gordo fez piada dizendo que a minha noite provavelmente fora tão boa que eu varara a noite e que de tão bêbado tinha esquecido o carro em sua fazenda. Concordei rindo. Ele mesmo me dera uma desculpa que gostei e acabei abraçando. “Porque não chamou um táxi?” “Queria andar pra ver se sarava um pouco” respondi pensando rapidamente. Ofereceu uma carona até sua chácara para pegar o carro. Achei boa a idéia e fui. “Sobe aí”. Pulei na carroceria. Osório deixou escapar um pulo de alegria. Comecei então pela primeira vez a achar toda aquela simpatia meio estranha.
Cheguei no casarão ainda curtindo o vento na cara e sentindo um pouco o fato dele ter se acabado. Desci pulando, prontamente caminhei em direção ao carro. ‘Ei, mas que modos são esses? Não vai ao menos entrar pra um café?`. Disse o gordo brincando, mas meio bravo. Aceitei dizendo que assim o fazia com aberta obviedade e muito prazer, aí então bateu ele a mão na testa e comentou com impostação serena e doce que tinha acabado de lembrar de certos afazeres, inadiáveis, e que eu havia de perdoar o inconveniente, pois ele não dispunha de tempo. Cumprimentou cordial, no mesmo lugar, sem se aproximar, e entrou, porém, não deixou nem se deu á indiferença de perder qualquer atitude típica e caricata da personalidade dos que ostentam com sabedoria certa posição e certas posses, a minoria, e em óbvio modo duas capangas ficaram ali ao meu lado. Perguntei para Osório se queria prosear, disse que sim e saímos caminhando os três, o terceiro sempre calado e olhando para baixo de espingarda enferrujada nas mãos. Andamos como loucos sem rumo e de modo vagaroso tal qual despreocupados, sempre em linha reta, apenas mudando a direção quando brotava do nada um obstáculo, inesperado por causa da ausência coletiva de concentração, mas passado o empecilho retomávamos pela mesma direção retilínea. Falei muitas mentiras, coisas que achava fazer parte do meu personagem e cada feito ou mordomia adquirida que contava, fazia brilhar os olhos de Osório que pouco falava e quando dava disso era em sua maioria para pequenos comentários e afirmações e mesmo no casual momento de silêncio, ele pedia licença quando falava coisas de seu passado o qual abertamente se mostrava muito apegado, umas histórias curtas, diretas, variadas, distintas e meio fantásticas em sentido fabulado e que sempre resumiam, na verdade, a intenção de venerar Dom Quixote por tê-lo salvado de seus infortúnios. Preparava pra ir quando vi uma coisa inacreditável no meio do pasto e quando viram eles a minha cara de espanto olhando para a terra, apressaram um pouco o passo e até o segundo segurança, aquele que até então estava calado, começou a puxar um assunto qualquer. Agachei. Pararam uma distância de dez passos na minha frente, viraram apenas observando. Peguei o objeto, fiquei em pé na análise, tentando não acreditar naquilo. Era a curta saia preta de Marcela. A mesma do último dia que a vi, naquela festa. Estava jogada á muitos e muitos metros da casa, de uns quatro a sete quilômetros. Entrei em um estado involuntário de começar a gritar feito louco, fazendo todo tipo de perguntas plausíveis, fazendo até as relacionadas á possíveis acontecimentos, variadas teorias, que vinham a mim instantaneamente, pois estava eu penetrado numa catarse que gerou duas linhas de raciocínio sobrepostas ao mesmo tempo, porém extremamente díspares em processo, procedimento que até então eu nunca tinha passado, experimentado, então me centrei novamente no caso, chateado por ter que deixar de lado por completo a inédita e fascinante proeza, fascinante julguei na hora e pra ser mais sincero, já que deixei claro bem atrás do texto que eu não sou um escritor e sim um alugador egocêntrico de orelhas, ou de um só olho do pobre infeliz leitor, tanto faz, a veracidade é que não achei palavra melhor praquela sensação, na verdade não é esse o termo, mas aproxima-se um pouco pelo que me lembro, aliás, isso é um problema na língua portuguesa e deve ser por isso que existem tantos poetas vindos do nosso idioma. Não tenho certeza se o quê vou falar se associa ou não ao conteúdo da chamada semiótica, mas acho o português escasso se tomarmos em conta a extensa e abundante quantidade de sensações e sentimentos humanos, e não venha defendê-la com comparações com outros idiomas menos ricos porque no fundo isso não interessa, não tem importância, não consola e não tem sentido prático. Sim, acabo de perceber. Desculpe, fiz de novo. Vou parar, prometo. Tenho um dom incrível para afastar pessoas, diferentes dons existem independente de acharmos eles bons ou ruins, são dons e por isso mesmo eles têm de modo independente igual importância. Agora sim, parei.
Insisti sem sair do portão durante quase uma hora inteira pra falar com Dom Quixote, fazendo exigências, gritando, e tudo mais que eu não poderia fazer de jeito nenhum e que diminuía muito mais minhas já escassas chances. Nem comunicaram seu chefe, sabiam que não podiam deixar. Mas algazarra insistida é algazarra ouvida. Quando o gordo me viu curioso pela janela frontal do casarão com a saia na mão, pude ver mesmo havendo grande distância, vi que ele tirou, do nada, puxando de baixo, um revólver que já pôs em mira. Duvidei bastante perturbado, hesitando por sentir meu corpo esquentar, (ainda tive tempo de ver por cima minhas narinas avermelharem) e meio segundo depois ele atirou e reconheci de imediato aquele som inesquecível do disparo que ouvi quando levei um tiro na boca. O tiro fora pra cima. O típico aviso direto que é dado quando o lado em vantagem está de bom humor. Corri desengonçado o mais rápido que pude até o carro como um porco acabando de entender que aquela movimentação ao seu redor é a preparação pro abate. Cheguei em casa carregando a saia, coisa que só notei ali. Tinha dirigido todo o trajeto com a peça enrolada na mão esquerda, nem percebi, minhas mãos deviam estar coladas no volante.
Tinha uma nova situação agora nada agradável em minhas mãos. Sem trocadilhos. Chamava a polícia, voltava na fazenda com mais calma ou simplesmente esquecia tudo, afinal, tinha certeza que era Marcela naquele vídeo. Resolvi que fingiria que nada sucedeu naquele dia e aí então voltar para a chácara de maneira sã, recomposta, de postura mais educada, perdoando o balaço na fuça agora com autoria quase confirmada, de motivo ainda não compreendido e a agressão usada pro banimento. Cheguei a conclusão que a situação não era tão grave, ok, eu confesso, forcei por completo o otimismo, peço respeitosamente uma semi-absolvição, mas é por puro cagaço, puro experimento pra um minúsculo incentivo pessoal, conclusão que consegui engolir depois de insistir intensamente em valorizar duas idéias: Um: o fato de tê-la visto sorrindo e acenando e o segundo e mais difícil: afastar os demônios das centenas de outras hipóteses que vinham em minha cabeça e quando o tempo enfim determinava ser isso impossível eu tratava de centrar nas suposições mais felizes, mesmo que fosse necessário procurá-las. Uma que era idiota ainda que engolível, felizmente em irônica simultaneidade devido ao nível de desespero, baseada de que talvez Marcela estivesse menstruada aquele dia e arrumara alguma mulher que emprestou uma roupa. Mulheres se unem muito mais que os homens, pois têm mais dores em comum. Tentei seguir então com meu plano dentro do cotidiano tentando ficar mais leve.E bem mais rápido do que esperava, consegui. Aliás, muito mais rápido. Em uma semana já esquecera de tudo, em duas semanas retomara a amizade com Dom Quixote, em três conseguia realizar um dia digno do plano, coisa que até então não havia conseguido com total êxito, e em quatro meses já conhecia todos os convidados, tornara maçom iniciante por indicação, sem precisar que pesquisassem minha vida, e passava de uma festa a outra como pinga passa em roda de capiau na hora do descanso, sendo sempre reconhecido por ao menos quatro ou cinco dos presentes. Até a descoberta verdadeira de três anos depois, umas situações, uns piparocos e algumas mortes.