sábado, 27 de outubro de 2007

- Abra a porta e saia com as mãos pra cima, sabemos que está aí.
Merda. Quem chegou primeiro? A federal ou a civil? Foda-se, vão me executar mesmo, é operação extra-oficial. Bem na hora que eu estou cagando, levanto a calça sem limpar mesmo e começo a suar como um porco antes do abate, porém em silêncio de complexidade. Apenas meia hora depois do meu grande momento? Acabando de chegar, esvaziando os intestinos por causa da intensa excitação passada á pouco, eles surpreendendo-me em minha própria casa? Foda-se. Acharam-me. Olho pela janela? Vou levar um tiro? Acho que vão querer me tirar daqui, certamente para fazer o serviço num lugar mais apaziguado. Se eu tentar fugir, vai ser aqui mesmo, e dirão que tentei reagir, mesmo sem arma, arrumar-me-ão uma, e caso fechado e arquivado. Vou olhar, foda-se. Vou à janela da sala, a única fechada com vidro. Se levar uma bala na cabeça ao menos o vidro segure um pouco. Tento acreditar nisso, mas sei que é só um apoio pra esse primeiro anseio impetuoso. São cinco viaturas, quatro oficiais armados com objetos tão leves como um motor de opala. Só quatro? Os outros devem estar nos vizinhos e nas redondezas, alguma viatura a mais no fundo da casa, no quarteirão de trás. Federais. Tudo isso em meio segundo de janela, nem me viram. Sabem que estou frito, é só esperar. Merda, nem ouvi chegarem, nada. Malditos intestinos. Ouço o bordão mais uma vez, só que desta vez com uma fatídica inserção:
- Abra a porta e saia com as mãos pra cima, sabemos que está aí. Tem um minuto, caso contrário, entraremos á força.
Malditas encenações para os curiosos. Dão a entender que posso estar armado, para que eu tentando uma fuga, o segundo plano funcione. Sabem que não estou. Eles sabem. Não consigo pensar, não vejo as falhas, pois não vejo a montagem. Perdido, nada, nada, e ainda com o resto de fezes se remexendo em minha cueca. Encosto o ouvido na parede. Não ouço nada, o tempo está passando. Desligo minha mente, respiro compassado, retomo a pulsação natural aos poucos, ponho toda minha vida nisso, tento chamá-lo de modo consciente pela primeira vez. Invoco-o imóvel, com todas minhas forças. Pela primeira vez sua presença é decisiva. Vem, por favor, vem. Vem, e de espectador passivo passe para agente. Vamos trocar de lugar, eu imploro, eu deixo, eu quero, perdoe-me por tentar barrar sua vida por questões sociais, perdoe os tratamentos que lhe deixavam traumas agonizantes, mas nunca acabavam com sua vida, pois somos um só e eu vivo para manter sua existência. Sempre te amei. Vem. Mas vem inteiro. Essas tentativas de aniquilação vieram de meus pais na minha infância e juventude e da minha criação nesse mundo. Eu nunca te neguei em meu intimo. Vem, juro que serei o observador que só experimenta os atos, não interfere nem os comete visando os créditos. Não te dominarei depois de sua obra, quando estás fraco, asseguro-lhe. Vem, minha outra personalidade, e tome o que é seu, sempre foi, e o é por direito, esqueça os falsos diagnósticos criados pelos homens. Dupla personalidade, esquizofrenia e todos os fracos argumentos que tentam nos separar.
Essa foi a prece. Não sei o que aconteceu depois dela, nem lembro seu fim. Deve ter vindo tão forte que apaguei pela primeira vez, acordei com um beliscão de um inseto, gritando, num só pulo de bezerro assustado recompondo a memória aos poucos. Estava num matagal, quase devorado pelas formigas que picaram consideravelmente meu corpo, levantei num só impulso, tentando me livrar das malditas, em desespero, ao mesmo tempo ouvindo baixinho os carros que pareciam estar em alta velocidade. Era noite. Achar a estrada era o primeiro passo, as perguntas e reflexões podiam esperar. Coloquei-me em pé e saí de pronto a caminhar. Dei um passo e fui invadido por uma dor insuportável de uma intensidade que desde então não conhecia, por várias partes do corpo. Estava certamente baleado e encharcado de sangue na camisa, mas muito pouco na calça, respingada, que estava com dois rasgos, um em cada perna, da circunferência de uma pêra na altura dos joelhos, provavelmente rolei, pois estava com escoriações nos cotovelos, nas costas e nos joelhos. As reflexões sobre o que tinha ocorrido até aqui eram agora inevitáveis, imperceptíveis, mas fui tomado por um momento de lucidez e comecei a procurar a estrada. Andava lentamente e cada passo era uma dor nova, um outro colorido, um sabor particular. Em pouco tempo acostumei-me com elas, pude comprovar que o que dizem é realmente verdade. Achei a estrada facilmente. Comecei a pensar na morte a partir daí, cri convicto que podia morrer a qualquer momento. Talvez estivesse vivo e caminhando somente por causa das formigas. Salvo pelas malditas formigas que tentavam devorar um cadáver ainda vivo. Considerável quantidade de sangue doce para isca. Que ironia. Ou eu achava a estrada ou achava um lugar para me observar e ver se alguma coisa podia ser feita de imediato para conter ou tratar os ferimentos; mas o ímpeto maior foi procurar a estrada que parecia cada vez mais próxima, conforme eu andava. Sorte saber que estava me direcionando no local exato, pois as copas das árvores, quando juntas, podem enganar devido á sua propriedade natural de desviar o trajeto do deslocamento de ar, ainda maior o efeito quando são muitas, sendo o caso, alterando a projeção, a direção do som. Mas ele estava exatamente por ali, eu o sentia apesar de tudo, poderia nem ouvi-lo com clareza que nutria a certeza que o encontraria. Cheguei na origem dos ruídos de carros, mas havia um barranco que era necessário subir. Prestei atenção novamente á minha dor, devido ao cálculo do esforço que deveria ser feito e isso quase me apagou. Subi gritando. Meus ossos pareciam que iam ser reduzidos á pó a qualquer momento, que meus músculos iam se partir e repousar frouxos, dependurados em carne. A rodovia era movimentada, muitos carros dos quais só conseguia ver a luz forte, amarela viva, passando disforme, me encarando em meu consciente por menos de um segundo. Não tinha acostamento, fiquei quase que pendurado em sua borda, com a cabeça e metade do tronco á mostra. Outros pensamentos me invadiam, complicações sobre próximos passos, como chamar alguém, o quê explicar. Disperso nesses pensamentos, descansando fisicamente, mas movendo-me de vez em quando ainda com o medo da morte, percebi pela primeira vez um volume no casaco. Aliás, eu vestia um casaco por cima da blusa e na verdade toda a roupa era outra. Tinha trocado de roupa ainda antes de parar nesse lugar, depois do cerco na casa. Guardei mais algumas perguntas e acomodei o revólver na mão direita, bem apertado, já precavendo que uma dor repentina poderia tirá-lo de minhas mãos e arruinar-se no chão do asfalto, ou cair á ladeira, á própria sorte, no escuro da noite. A questão e o próximo passo explícitos é fazer a abordagem. Penso em improvisá-la, mas é péssima idéia. Todos os ovos pra fazer a gemada e não sei quebrá-los. Que maldito fracassado.
O movimento diminui. Silêncio. Subo.Que malditas horas devem ser? Acredito no destino e deito na estrada, num gesto quase simultâneo com o pensamento de fazê-lo, uma idéia que se realiza sozinha por instinto. Idéias assim não têm meio termo, ou erram em completo ou são em imediato um findo êxito. Uma caminhonete desvia buzinando, o carro logo atrás pára.
- Você está bem? Foi atropelado? Está consciente? Meu Deus, você está péssimo.
Ele sai do carro, não pronuncio palavra alguma, não que não queira, mas porque realmente não consigo, não conseguiria antes, percebo isso com minha primeira tentativa. Ele pega o celular, está desesperado, fala alto e gaguejando. Preciso levantar, meu deus, como preciso. Levanta, filho da puta, levanta. Antes que seja tarde demais. Consigo com dificuldade, tremendo, aponto o revólver. Ele fica branco, mas o telefone permanece em sua mão, com uma atendente falando para um vácuo. Faço sinal com a arma para o celular. Ele abaixa. As armas têm uma linguagem universal.
Dou a partida e saio. Sigo a estrada primeiro, mas não posso fazer isso pra sempre, a queixa do roubo já deve ter sido relatada, hora de fazer escolhas. Preciso sair do estado, eu agüento, ou pelo menos chegar na divisa, em qualquer hospital daqui irão me pegar.
Seria uma boa idéia se eu não tivesse dormido ao volante e acordado no meio do mato de novo. A única diferença agora é que eu estou dentro de um carro, mais ferido e desta vez acordei antes de cair em definitivo, sem tempo ou total consciência da realidade para reverter o giro das rodas em alta velocidade. Minto. Há também uma outra diferença. Isso parece uma fazenda.
Ando até o casarão, caindo algumas vezes. Chego até a porta frontal, que está aberta. Gritos. É uma mulher. Chego na fonte do som, a sala ao lado, nem percebem minha presença, um homem de pouco de mais de cinqüenta anos com um reio nas mãos e calça arriada, uma mulher de cabelo parcialmente grisalho ajoelhada, vestida apenas com uma saia sangra nas costas, nos braços e nos seios. Deus, como essa arma é pesada, parece que estou tentando levantar um cavalo com uma mão. Tremo, tento uma mira, respiro, disparo no momento exato que a mulher me nota, mas por coincidência não por opção. O pobre homem nem vê quem atira tampouco da onde vem o tiro. Triste surpresa mais que inesperada. Cai primeiro de joelhos, agoniza um pouco, se joga de bruços num baque abafado, tentando olhar pra trás, ver seu executor, como um último pedido automático no momento da morte. Sede de conhecimento dos fatos vividos nós temos até na hora da morte, na hora em que eles menos valem, ou seja, não valem nada. Silêncio. A mulher me olha, cai de braços abertos sobre o corpo do homem e começa a chorar ainda mais do que antes, tentando levantá-lo pelos ombros e pronunciando uma língua estranha, apagada e num carrossel de dinâmicas.
Vem pra cima de mim com o reio. Seus gestos são muito rápidos. Um animal em momento instintivo, raciocinando por genética. Foda-se. Que mate logo. Desisto.
Apanhei um pouco, mas fui tratado depois do acesso de ira, quando compreendeu minha ação, e concretizando um desfecho que seguramente o senhor deve ter imaginado. A narrativa aqui não existiria se não fosse isso. Pra minha surpresa eu não havia sido baleado, achei decididamente que devia ter sido, e muito, mas sim picotado num punhal. No mesmo punhal, várias vezes. A mulher não soube reparar, mas eu sim: eram cortes idênticos por todo o corpo. A mulher costurou os mais profundos como se fossem retalhos de uma roupa para ser utilizada no corte de cana, com uma linha marrom de costura comum e uma agulha enferrujada da qual ela dava fincadas fortes, sem cuidado ou reação alguma, limpando o sangue com um pano úmido. Na barriga foi a única vez que o punhal penetrou, dois dedos depois do umbigo, no lado esquerdo. O único ferimento preocupante, o restante era somente uns cortes superficiais, lambidas de lâmina, que mais sangravam devido aos pequenos vasos atingidos e aos movimentos bruscos que fazia até a estrada e na fazenda. Porquê tanta dor então, por todo o corpo? Abriam-se os cortes? Achei que não e comecei a acreditar que tinha rolado muito, que estavam fraturados alguns ossos.
Não consegui dormir mesmo. Cessaram as dores agudas dos cortes com as gazes e uma singela pomada de cicatrização de queimaduras. Quebra-galho. Mas a dor na barriga era infernal, destacava-se num grito com relação ás outras que murmuravam, mas talvez eu conseguisse apagar relaxando os pensamentos, porém ainda conservava o medo da morte no descanso, na entrega da consciência. A mulher não perguntou nada. Não tocou em hospital, não perguntou de família ou conhecidos, não perguntou meu nome. Sabia que tinha algo e ao mesmo tempo estava ocupada demais enterrando o marido em uma das hortas. Enterrava com tristeza, presumi, podia ver da janela, deitado na cama. Parecia mais um ritual mecânico, não expressava reações faciais, cavava devagar, olhava em direção ao sol que estava nascendo ás vezes, limpava a terra das mãos no vestido verde e passava a mão na testa, apoiava na pá.
Acordei desnorteado. Estava claramente num hotel de beira de estrada, revelado já na primeira descerrada de olhos. Pulei da cama. Com que diabos arrumei dinheiro pra pousar aqui? Cessa, na escrivaninha ao meu lado direito vi uma maleta marrom com meu revólver encima (não sabia de onde tinha vindo o desgraçado ainda), e um papel dobrado embaixo. Tirei o papel, vi um mapa. Fique parado durante quase meia hora, com cara de idiota olhando para ele. Virei no verso. Anotações. Três endereços e alguns esboços. Não conhecia nenhum deles a primeira vista, mas um soava bem familiar. Era o endereço de minha finada mãe, concluí. Casa que passei do nascimento aos meus quatorze anos, quando ela faleceu de meningite. Não sabia quem morava lá agora e nem me fazia interessado, não nutria nenhum tipo de saudades do local nem mesmo curiosidade de revê-lo mudado. Na verdade, lembrava-me pouco. Comecei a associar os endereços. Nada. Que cidade estava? Quanto tempo estava da minha cidade natal? Talvez já estivesse nela. Os outros esboços estavam inteligíveis, era minha letra, as ao mesmo tempo não era e os rabiscos pareciam ter sido escritos com uma pressa que desconheço e em outro momento, depois, ou antes, de anotar os três endereços. Conferi o revólver, tinha quatro balas e nenhum sinal de munição por perto.
Peguei o telefone, eram exatamente uma e meia da tarde. Uma voz respondeu sem ao menos eu me revelar:
- Olá Senhor. Vejo que acordou. Tentamos levar seu almoço duas vezes, mas você não respondia. Cuidaremos de aprontar outro pra você, fresquinho.
- Esqueça o almoço amigo. Vai parecer meio estranha essa pergunta, mas onde estamos?
- Motel Boulever.
- Não, digo, em que cidade.
- O motel fica nos domínios de x, senhor. Doze minutos de carro até a cidade.
Estava na cidade vizinha. Trinta minutos até a cidade que nasci. Pegara os endereços pelas pessoas ou pelas casas? Obviamente pelas casas, mas porquê? Estava foragido, ferido e com alguma idéia na cabeça.
Revirei o quarto inteiro, mas só achei pertences em lugares óbvios mesmo. Estava de passagem e seja como for, não cheguei ali de carro. Não achei chaves, não havia carro nenhum lá fora, aliás, não devia ter mais ninguém hospedado ali. Era começo de tarde, sábado, e além de tudo, aquilo era um motel no meio do nada. Liguei a TV sem o propósito de assisti-la, apenas quebrar o silêncio, e fiquei sentado apreciando as dores dos ferimentos quando o telefone tocou.
- Olá. Consegui. Vou aí ou você vem buscar?
- Venha aqui.
Sentei e esperei. Demorou cerca de vinte minutos, ou pouco menos. Desliguei a cabeça, pra mim foi o tempo de uma pequena pescada, um pequeno fechar de olhos. Ouvi a porta, abri. Não enxerguei nada, nenhum rosto, nenhuma mão, tudo escuro. Eu agora tinha um saco preto enfiado na cabeça.
- Desça quieto.

Ao contrário do que pensa vossa senhoria, eu não apaguei no trajeto nem acordei em outro lugar. Muito pelo contrario, fiquei atento á tudo e deixei os ouvidos trabalharem como um guia meticuloso, isso sim era previsto. Estrada de terra, pois o carro balançava, poucos carros, e então, conforme tempo ia, começava a ouvir cada vez mais carros até desembocar aos poucos num som de cidade, rarefeito em seu início, loucamente aberto em seu interior, ou era a cidade de meu destino ou era a cidade do motel, vizinha, pois foram por outra estrada, o tempo de viagem para comparação era totalmente relativo, quando pararam desci no meio da rua, soube, pois tropecei na calçada aonde tinham estacionado, e estranhamente eu ainda estava encapuzado, talvez não houvesse transeuntes ou talvez fosse normal aquilo naquele lugar mesmo, aí não entrei em lugar algum, fiquei parado na soma de meus três passos, e ninguém falava nada, nenhuma voz desde o motel, ouvia pequenos rasgos sonoros de borracha em atrito com o chão úmido á minha volta, mal ritmados como um macaquinho de brinquedo que toca caixa marcial, e no meio de nãos importas, no meio de o quê são issos, comecei a apanhar feito louco com massas que não saberia dizer e eram mãos ou outros materiais, ainda achei que me cortavam, mas percebi que eram os antigos ferimentos se abrindo.
Quando deram por terminado, ouvi o primeiro som vindo de uma boca. Ele ria com uma risada grave e logo os outros riram também.
- Não pense que poderá desistir. Sem desculpas ou barganhas. Faça, e se não puder, faça mesmo assim.
- Quem são vocês, filhos da puta? – disse pausado, tentando não degustar em excesso do sangue que jorrava em minha boca, para não me afogar.
- Recado tá dado. Exatamente como você queria. Entra no carro. Volta pro motel.
Não quero narrar a viagem de volta, por favor. Foi só a viagem de volta e é isso, com o detalhe que fui deitado e devo ter manchado o carro no que eu sentia uma umidade, um líquido frio, depois de um tempo. Subi encapuzado como antes e fui jogado da porta para o quarto, só aí tirei o capuz e fui ao banheiro, para vomitar um líquido amarelado, com um pouco de sangue que desenhava listras que pareciam arquejar aos meus olhos. Deitei na cama, a Tv ainda estava ligada, fixei meus olhos nas imagens, não acompanhava nada, nem sabia o quê estava passando ali, simplesmente sons e imagens vinham e saiam com a mesma natureza pelos meus ouvidos. Aí sim, prezado senhor, capotei no abraço da irmã da morte, louvando os prazeres de sua delícia.
Ha, não pense o estudado que acordei em outro quebra-cabeça, não, poupe-me da presunção do relato levemente transfigurado por capricho proposital deste aqui. Acordei no hotel, exatamente no fim da noite civil e no começo da noite dos suicidas, onze e quarenta e sete. Senti um forte cheiro de merda. Aliviei-me, pela primeira vez nesses fatos, fato que me deixou confuso logo em seguida, aliviei-me por vir do banheiro. Tinham cagado lá e não fui eu, porque a cena lembrou-me que não fazia isso á tempos e meu intestino começou a funcionar, cantando na rouquidão de sua natureza. Minha cueca ainda estava suja, porém com o material endurecido. Caguei, deitei na cama, senti um cheiro forte embaixo, sons de moscas. Tinha um corpo lá. Ouvi sirenes. Falaram que matei o governador, nunca havia matado alguém antes. Termino o relato com um pedido de clemência á minha execução não-oficial daqui três dias, já soube das histórias que serão contadas a respeito e até sei quem será o executor contratado por benefícios, é um colega daqui.



Ao meu defensor Dr. Joel Fernando Ventura,
“Penitenciária Federal Carlos Martins”, cela 34, manhã de 12 de outubro de 1983.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Psauy

Ponha os óculos, Madre Friniscúa e apareça agora mesmo em minha frente - a superiora tartamudeou-se assim que fez estalar os estalos dementes de todo o convento para a beleza convulsa, quase renitente aos caminhos anversos daqueles corredores. Ela estava louca, falavam pelo ambiente, ela estava louca como uma senadora americana do século dezenove, gemendo a noite em língua estranha. Irmã Bethânia, sua hora chegou, ponha o hábito, falou discretamente e desceu acompanhada com passos apertados de jamanta, mesmo ser ainda cedo para o recolhimento geral. Como queira, mas desta vez não leve velas, vá sozinha, ande em passos pequenos dentro de seu pequeno sapato e sorria ao passar em cada porta aberta. Barra e suspensão, respectivamente, ligada em direção interior; oraram sim, antes não uma, mas três ou quatro vezes e perguntou-lhe sobre a possível gravidez e se estava amaciada e se abraçava a graça ou nutria o campo com mais carne e ossos pequenos, e assim no seja o que fosse, havia de passar por ela. Bethânia hesitou, ensaiou choro, sairia dali. Passou em corte no campo á noite, nuca tinha visto o campo á noite, cuidavam-lhe no dia nas plantações e fumavam escondidas, todo o convento exalava tabaco, todo um querer de cabeças borradas em tristeza, quantos desenganos, e teve com a mãe desfalecida antes do nascimento e seu nome era Psauy e seria profeta. Cresceu amaldiçoando o criador, negando fazer traquinagens quando não e aumentando as mamas da progenitora, pois era de muita sede. Veni tollis, repetia, Vidi tollis gritava, vici tollis, sussurava fumando. Alguns pés de tempo acumularam-se, hoje tem trinta e três anos, desmentidos para vinte e um quando perguntam de proezas, aumentados para quarenta e dois quando perguntam de sua mãe.