domingo, 7 de janeiro de 2007

Frade

Depois dois anos fazendo várias gracinhas, uma tarde, na palidez entre a folhagem que o outono amarelece, pelas três horas, eu, angariando com Padre Cueiro duma visita à fazenda, sentiu logo da antecâmara o vozeirão de Dona Alva, que rolava no compartimento azul em trovão frouxo, este franziu vivamente o reposteiro - e sacudiu o punho para o imenso homem que enchia um dos capeirões guaraçapé, estirando por sobre as flores da alfombra uns nacos de fezes novas de grossas tachas chamejantes:

- Oras garoto, não fique aí a me olhar atravessado.

Disse isso com ar histórico, vivera em Lisboa, gastando as solas pelas escadarias do puteiro onde havia conta e pelo que nomeou Primeiro Cliente Civil de Oliveira, com honrarias e pradas, bacharel sumidos na sombra das copulas, ovençais sopesando fartas bolsas de ouro, todas as putas lhe recebiam gritando, batendo siririca com a mão desocupada, espostejando nédios lombos de ceado... Portanto, marcava um salutar anacronismo ao cálice pátrio, cuja concubina, corista, ele fascinara, na consciência da sua obesidade que assim crescia em moço muito afável, esbelto e loiro, duma alvura sã de porcelana, com uns citadinos e risonhos olhos que facilmente se enterneciam, recebe ela na sua câmara, com os braços nus, por noite de maio e de lua, o rabudo, com um bordão de romeiro, contava essa velhíssima história, que, enquanto longe e cingido de ferro atirava a acha de porra às portas sempre elegante e apurado na batina e no verniz dos sapatos, apresentando-se para o frade, num domingo qualquer depois do almoço, onze tiras de papel, homem espreitador e de acrimoniosos sorrisos, tornou-se padre também e aqui está ao meu lado arrumando a horta.

- Ai da dama! Logo os sinos tangem!

Falava sobre Dona Alva, que cortejara todo o dia, já no patim do verdugo, de capuz escarlate, encostado ao machado, enxugando suores que a banha proporciona, entre dois cepos cobertos de raça. Doía-me o coração enquanto vi no fio da batina seu saco á mostra, balançando, e fui hipnotizado por alguns momentos sobre o ir e vir ritmado, pulsolêneme, confesso que é gordo, mas muito asseado, pois até me pediu para eu lhe comprar hoje, na cidade, uma bacia nova para defecar. Não pude resistir e mordi-lhe os bagos e após gritar escarrando, avisou que eu era muito cartácea e muita fêmea para um velho de sessenta anos. Senti-me lisonjeado. Sim, amiguinho, deves organizar, com estrondo, o reclamo, de modo que todos o conheçam, e que todos o adotem, ao menos como se adotou o sabão do Congo, hein? E conhecido, adotado, que todos o amem enfim, nos seus heróis, nos seus feitos, mesmo nos seus defeitos, em todos os seus padrões, e até nas veras pedrinhas dos seus rins descabaçados. Retirou-se ao seu aposento, no seu quarto, abriu a varanda, e debruçado, acabando o charuto, na choupa desafetação da noite de maio, ante a fausta e silenciosa fronte da orbe lunar, pensava regaladamente que nem encerraria o esfalfamento de esmiuçar as vestes e os fólios pançudos.